The Project Gutenberg EBook of Theatro de João d'Andrade Corvo - I, by João de Andrade Corvo This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Theatro de João d'Andrade Corvo - I O Alliciador - O Astrologo Author: João de Andrade Corvo Release Date: March 26, 2009 [EBook #28414] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK THEATRO DE JOAO D'ANDRADE CORVO - I *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search)
EDIÇÕES
DO
ARCHIVO UNIVERSAL
THEATRO
DE
JOÃO D'ANDRADE CORVO
I
O ALLICIADOR—O ASTROLOGO
LISBOA
TYPOGRAPHIA UNIVERSAL
rua dos Calafates, 113
1859
{D1. Pg. 1}
José Velhaco | 30 annos | O sr. Theodorico |
Luiz do Campanario | 20 » | » Tasso |
Antonio Prudente | 50 » | » Epifanio |
O Vigario | 50 » | » Domingos |
Joaquim | 40 » | » J. Antonio |
Joanninha | 18 » | A sr.ª Soller |
Maria das Dores | 60 » | » C. Talassi |
A scena passa-se na Madeira em 185...
Um campo de vinha. Á direita uma choupana aceiada e grande, cercada de hortencias, bannaneiras, e moitas de flores.
Luiz do Campanario e Antonio Prudente
(Sahindo da choupana.) Boas tardes Luiz. Por aqui já a esta hora, rapaz? Julgava que só á noite voltarias da cidade.
Agora mesmo cheguei de lá. Eu, só á noite é que contava voltar; mas a pescaria depressa se vendeu. Os americanos compraram tudo para a {D1. Pg. 2} esquadra, que hontem chegou ao Funchal. Quando era pela volta do meio-dia estavamos livres.
Abençoados americanos! Navios e esmolas, tudo nos mandam, para nos ajudar a viver. Que isto hoje nesta terra, Luiz, só se vive do que nos dão por caridade.
Vocemecê tem razão, sr. Antonio Prudente. Vivemos de caridade... da dos estrangeiros, que os lá de Portugal esqueceram-se de nós.
Não se esqueceram, talvez. São pobres como nós, e ahi está. Eu, por mim, não quero pensar mal do que sempre me ensinaram a respeitar. Olha, o melhor é não fallar em coisas dessas: tenho medo de perder o respeito ao senhor governo, o que seria contra os meus costumes antigos. Já estou velho para novidades; e como, Deus louvado, tenho para ir passando, esta casa, e esta fazenda, que eu fiz por minhas mãos, não quero entristecer-me já agora. Tristezas acabam com a gente mais cedo.
É verdade; lá isso é, sr. Antonio.
Tu tens coisa que te dê pena?
Não, não tenho. Não é nada.
Tens. Disseste isso como quem sente um pezo sobre o coração.
Tenho a minha mãe velha e doente e eu pobre, e...{D1. Pg. 3}
E o que?
Esta pobreza tira-me até as forças para trabalhar, queria ter mais...
Tens ambição, rapaz? ah! ah! Teu pae era bom homem! Teu pae trabalhou toda a vida ali na Lombada, como caseiro do morgado Bittencourt: não ganhou nunca senão para cada dia comer uma raiz de-ynhame, ou uma espiga de milho, e eu não lhe ouvi fazer dessas queixas contra a pobreza.
Meu pae tinha mais animo do que eu. E depois, a fallar a verdade, tinha coizas que o consolassem: tinha em minha mãe uma santa companheira, que o ajudava no trabalho; em minha irmã uma boa filha. O morgado velho não lhe queria mal, e ajudava-o. A terra então dava vinho; não era como hoje, em que tudo parece amaldiçoado aqui na Madeira, em que até se mirraram as uvas...
La nisso tens rasão. Foi praga que cahio sobre nós. Mas para tudo, hade Deus dar remedio. Tu tens meio de ganhar a vida, Luiz: não desanimes, rapaz.
O que eu tenho é minha mãe abatida e triste, que faz chorar. E de meu, tenho a metade das bemfeitorias que meu pae fez, em 20 annos de trabalho, ali na fazendinha do morgado Bittencourt; a outra metade pertence a minha irmã, que está casada, e cheia de filhos—pobre mulher!—E{D1. Pg. 4} as taes bemfeitorias são coisa tão pouca, que de nada me servem, nem acho quem m'as compre. O que me vale é ter ahi logar entre a companha de um barco de pesca, senão morriamos de fome, eu e minha mãe.
Coitado do Luiz! Tens rasão, filho, tens. Eu é que, por ter esta fazenda de meu—porque esta é minha, de véras; terra e bemfeitorias—por ter esta fazenda, e uma filha que é a alegria e a benção desta casa, pensei que todo o mundo era feliz. Deus me não castigue, Deus não faça cair sobre Joanninha o castigo desta minha cegueira.
Deus a ampare, á nossa Joanninha.
Bem o merece. Boa, e bem creada. Pode ser mulher ahi de qualquer morgado, a minha filha, não lhe falta nada. Sabe ler, escrever, e até bordar. Heide cazal-a com um homem que tenha de seu, para que ella não saiba nunca o que é pobreza.
(Com dor.) Faz... faz bem, sr. Antonio Prudente. Sua filha deve... ser feliz com um homem que tenha de seu, que a traga como as meninas lá da cidade... que a faça feliz. Mas... mas ainda não está escolhido noivo para Joanninha? Vocemece ainda se não decidiu a cazal-a? É cedo... Joanninha é muito moça.
Tem 17 annos feitos. Mas pensar no casamento ainda não pensei. Custa-me a separar della.
(Com alegria.) Então por ora não se casará.{D1. Pg. 5}
Os mesmos e Joanninha
(Correndo para Antonio.) Não se casará por ora, nem casará em quanto não tiver noivo do seu gosto.
Joanninha!
Estavas ahi, filha?
Estive a dar de comer aos meus pombos, coitadinhos, e agora vinha para o acompanhar, pae, lá abaixo á Fajã; para o ajudar no que for necessario.
Ora aqui teem o que se chama uma boa rapariga.
Sou muito sua amiga, pae; e por isso me não quero casar, nem ir para longe desta freguezia, onde nasci e me criei (Olhando para Luiz.) Tenho aqui todos, e tudo de que eu gosto.
Esses amores hão de te passar. Outros os farão esquecer.
Não se diga que me heide esquecer do amor que tenho a meu pae... e áquelles com quem vivi sempre. Não heide perdoar a quem o disser. (Com tristesa.) Se os outros se esquecerem, hei de lembrar-me eu.
Ninguem tem coração para se esquecer de ti, Joanninha.{D1. Pg. 6}
Assim será. Mas meu pae diz, que pelos amores novos se esquecem os Antigos.
A mim parece-me que antes perderia a vida, antes poria a minha alma em peccado mortal, do que perder da lembrança os dias em que brincámos ahi, á sombra dos castanheiros.
(Com inquietação.) Está bom, está bom. Lá estão vocês a dizerem-se finezas, que me parecem dois senhores da cidade.
Então a verdade porque se não hade dizer, pae? Elle pensa aquillo que diz, faz bem em o dizer. Fomos creados um com o outro, e a sr.ª Maria das Dores, a mãe do Luiz, serviu-me de mãe a mim. É como se fossemos irmãos.
Irmãos!... irmãos sim. (Commovido.) E o que mais me custa, é separar-me de ti...
(Assustada.) Que separação é essa? Vaes deixar-nos?
Talvez... Parece-me que irei ahi, a bordo de um navio, fazer uma viagem... Fallaram-me em ir marinheiro n'um navio que sae...
Para onde?
Para longe. Ainda não sei.
Não vás.{D1. Pg. 7}
Então porque não hade ir? É tentar fortuna. Uma viagem ao Brasil, talvez. Ir e voltar. Faz muito bem o nosso Luiz.
E a tia Maria das Dores, a mãe de Luiz, coitada?... E todos nós?
Se eu me for... minha mãe fica em casa de minha irmã.
(Com as lagrima nos olhos.) Não pode ser. Assim não vae isto bem. Tua mãe está velha... e sem ti estalla de pena.
Esta vida de barqueiro, de pescador, é vida miseravel, e sem esperança. Lutar com o mar, arriscar a vida nos temporaes, andando por entre essas rochas quando o tempo está de lavadia, e não passar nunca de ser um pobre, vivendo de mizeria; um desgraçado a quem os ricos fazem esmola, quando lhe pagam o seu trabalho; passar a vida inteira neste penar, isso é que o coração cá dentro não me soffre.
E queres?
Quero ir por esse mar fóra, por esse mundo de Christo a tentar fortuna.
E se morreres?...
Sempre hade haver agua no mar para de uma vez me mergulharem; ou uma pouca de terra para me deitarem por cima.{D1. Pg. 8}
Jesus! Misericordia! Que cousas dizes! Chego a tomar-te raiva quando te ouço fallar assim, (Chorando.) Não vês que me fazes pena quando dizes dessas doidices?!
Não é para te fazer pena...
É verdade. Elle faz o que deve. O homem pode morrer no mar ou em terra, e em morrendo acabou-se. Tambem eu heide...
Se continua, pae, a fallar nessas cousas, vou-me, fujo, caso-me...
Não se torna mais a fallar em tristezas. Se for, heide voltar. Assim como aqui o sr. Antonio fez, pelo seu trabalho, desta terra, que era um mato maninho, uma fazenda que faz gosto aos olhos verem-n'a, tambem, eu heide da minha barca fazer um navio bonito, como o «Galgo.» Que isto da gente ter vontade, cá de dentro, de fazer uma cousa, é meio caminho andado para a conseguir. E, se não, vejam o que succedeu ao José Velhaco. Ha menos de um anno pobre como eu, e agora com grilhões de oiro, e relogio, e dinheiro, que é um pasmar. Foi a Demerara, e voltou rico. Fortunas!
O José Velhaco foi a Demerara, e voltou rico. Fortunas, dizes bem. Outros lá vão, e por lá ficam.
Morre-se por lá como por cá. Mas aquillo é terra para fazer fortuna. Não foi só o José Velhaco{D1. Pg. 9} que voltou rico. Ahi estão na Madeira mais de meia duzia, a quem succedeu o mesmo.
Não te deixes enganar com as apparencias. O sr. Vigario ainda outro dia me disse, que esses que veem ricos de Demerara são isca para apanhar os passaros.
Talvez. O que for soará.
Toma os conselhos, que são de quem tem já cabellos brancos. Não te deixes enganar com as apparencias.—Vamos, Joanninha, vamos até á Fajã, antes que se faça mais tarde. (Sae.)
Adeus Luiz.
Luiz e Joanninha.
(Detendo-a.) Uma palavra, Joanninha.
Que me queres?
Tenho que te dizer.
Mas agora! Meu pae espera-me...
Diz-lhe que já vais ter com elle. Eu preciso fallar-te.
Virgem Maria! que susto me estás mettendo! (Aos bastidores.) Ahi vou já, pae, esqueceu-me uma coisa em casa: já vou lá ter, n'um instante.{D1. Pg. 10}
(De dentro.) Pois eu cá vou andando.
(A Luiz.) Diz agora o que queres de mim.
Ouve, Joanninha. Tu lembras-te que sempre vivemos juntos; que de pequenos andámos sempre um com o outro por essas serras; que se não passou até hoje uma semana em que nos não vissemos?
Lembro-me.
Não te esqueceu ainda aquella manhã, em que fomos juntos ao Paul da serra, e levados, não sei por que alegria que vinha cá de dentro, apanhando flores de urze, e brincando, chegámos até ao Rabaçal?
Não me esqueci dessa alegre manhã. No Rabaçal a agua saltava do alto da serra, e depois espalhava-se em gotas de chuva, que brilhavam ao sol como estrellas, e vinham cair até onde nós estavamos sentados: de baixo daquelle grande til que nasce da rocha. Eu senti nesse dia o que não tinha sentido nunca: não sei se alegria se tristeza... O coração batia-me como eu nunca o senti bater.
Tinhas então 15 annos, e eu 20. Foi ha 2 annos. Desde esse dia, nunca mais andámos sós, um com o outro pela serra.
Mas, desde esse dia, quasi que se não tem passado um só sem nos vermos.{D1. Pg. 11}
Joanninha, de tudo te lembras. Agora já te posso fallar com menos susto.
Para que me lembras-te essas coisas todas? O que tem isso com a pergunta que me querias fazer?
Olha, Joanninha, não é facil a gente dizer tudo quanto quer; porque, emfim, o sentir não depende da vontade, e as palavras não chegam para dizer tudo.
Mas... o que querias dizer-me?
Não te pões mal commigo, não é verdade?
Porque?
Talvez seja esta a ultima vez que te vejo. Esse tempo, em que nos podiamos ver todos os dias, passou.
Então partes breve?
Hoje mesmo.
Deus me acuda! Hoje!
Hoje me vou.
Não pode ser. Não disseste nada a meu pae.
Nem lh'o digas tu. É segredo a minha partida, não quero que minha mãe saiba. A ti{D1. Pg. 12} tambem não queria dizer nada, mas faltou-me o animo...
Ah! Luiz, em tu me faltando... ficam sem luz os meus olhos, e sem alegria o coração.
Eu tambem me vou e bem triste, Joanninha. Mas que queres? Quem é pobre, nasceu para padecer. É preciso fazer esta viagem para depois poder... se tu me não disseres que não, Joanninha—para poder...
O que?
Pedir a teu pae, que sejas minha mulher. Se não disseres que não.
Não digo, não te digo que não.
E promettes esperar que eu volte... tendo bastante de meu, para que teu pae consinta no casamento?
Se agora mesmo lhe pedisses, meu pae consentiria.
Não. Teu pae criou-te para seres rica, deu-te uma criação como a das senhoras da cidade; e não quer que te cases com um pobre, como eu sou. Ainda ha pouco elle m'o disse, aqui mesmo.
Só comtigo, Luiz, só comtigo me heide casar.
Já vou mais consolado: com mais animo para trabalhar, para me arriscar aos perigos.{D1. Pg. 13}
Não te arrisques. Lembra-te de tua mãe... de mim, que morro se tu morreres.
Não chores, minha querida Joanninha. A Senhora do Monte hade proteger-me, e eu heide voltar.
Prometto uma novena á Senhora do Monte, e muitas flores no dia da sua festa, se tu voltares cedo.
Agora... Joanninha... adeus... adeus!
Não te demores muito, Luiz. Volta, porque me deixas em cuidados... ralada de saudades.
Um abraço de despedida. (Caem nos braços um do outro.)
Adeus! Adeus! (Joanninha sae.)
Joanninha! Não sei como tive animo para a deixar ir... como tenho alma para sair da minha terra, onde ella vive... onde me fica amando.—E voltarei?... tantos lá teem ficado! Se uns morrem outros voltam ricos; e eu, pobre como sou, nunca heide casar-me com Joanninha.—As orações daquella santa rapariga ha de Deus ouvil-as, e basta.—Quem se não arriscou não perdeu nem ganhou.{D1. Pg. 14}
Luiz e Jozé Velhaco
Santa palavra, Luiz, santa palavra que nem todos intendem, e que é preciosa para os que a sabem. Eu, se não soubesse esse rifão de côr e salteado, estava a esta hora com um sacho na mão a sachar milho na fazenda d'um morgado, que, no fim de contas, me ficaria com metade do producto da minha labutação. O morgado que nasceu rico—isto é um modo de dizer—que nasceu dono de terras, e nem sabe nem tem prestimo para as cultivar... Ah! ah! o morgado guardaria metade do meu milho, para dar aos cavallos... e eu, com a minha metade, nem teria para enganar a fome. Santa palavra, rapaz, santa palavra!
Os pobres cazeiros trabalham muito, e padecem muito, Jozé Velhaco. Nisso tens tu rasão.
Tenho, e não me heide cançar de prégar estas verdades. Os cazeiros, nós, os villões, trabalhamos, e os morgados comem os nossos fructos e bebem o nosso vinho. Estão sempre aqui a fallar em que nós, os que vamos a Demerara procurar fortuna, largamos a nossa terra para irmos ser escravos dos inglezes, para sermos escravos brancos! E aqui, nesta terra dos morgados, o que somos nós senão escravos? Ao menos, lá por essas terras dos inglezes, um homem activo, tendo cá fogo de dentro como eu, e como tu, meu Luiz, faz fortuna, faz-se rico{D1. Pg. 15} como um morgado... mais do que um morgado, porque não deve nada a ninguem. Ah! ah! santa palavra!
Isso são sortes. Uns enriquecem, e outros por lá ficam, mortos ou escravos.
Qual historia! Pois um homem vae d'aqui, e recebe logo trinta patacas... como tu recebeste hontem. Em! Trinta patacas é uma boa conta.
É, é. Vinte ahi ficam para minha mãe; e as outras dez gastam-se na viagem.
Que importa? Chegas lá, trabalhas um... um tempo para pagar a divida, e a comida que te dão cada dia... e depois principias a ganhar por tua conta.
Mas esse tempo quanto dura?
Conforme... sim, é conforme. Para uns dura mais, para outros menos. É segundo as forças de cada um. Mas tu bem vês: aqui é que se não faz nada. Trabalha-se a vida inteira, a arrancar mato da serra, e levantar muros, a plantar arvores e vinha, a formar uma fazenda, e no fim fica a gente sem ter nada; porque a terra é dos morgados, e as bemfeitorias ficam agarradas á terra, donde se não podem arrancar.
Que de coisas tu sabes agora!
É porque vivi lá por Demerara com muita gente de tino, e aprendi muito. Aquillo é que{D1. Pg. 16} é terra, homem! Campos que é um gosto vel-os. Como estes aqui da Madeira, mas maiores. E na cidade? Ganha-se dinheiro que é um louvar a Deus!
Mas as febres?
Quaes febres! Ha por lá umas doencitas, que levam a gente ás vezes, mas não é coisa que se veja: nada, nem se dá por tal. E, depois, se por lá se morre de febre, por cá morre-se de mizeria, que ainda é peior. Tu tens medo de morrer?
Eu!...
Bem sei que não tens medo. Vaes á pesca em dias de temporal, quando os outros pescadores se metem em caza. Em a gente sendo animoso nem as doenças lhe chegam. Santa palavra! Olha para mim. Tu bem sabes que eu sou animoso, valente...
Serás; talvez o sejas. Ganhaste isso em Demerara?
Pois eu não sou?... Não fui sempre?..
Um armazem de pancadas, quando eras mais novo. Todos te davam; e tu não fizeste nunca senão levar e calar.
Hum! Bem vês que eu era... que tinha bom coração, e não queria fazer mal ao proximo. E a prova é, que já me esqueci de tudo que os{D1. Pg. 17} rapazes aqui da freguezia me fizeram, e que tenho mandado um pár delles para Demerara... a buscar fortuna. Pagar o mál com o bem, é de um homem como se quer. Tu mesmo, Luiz, agora me lembro, tu mesmo deitaste-me um dia na Ribeira Brava, dentro d'agua; porque eu te tinha tirado um pedaço de ynhame cozido... e eu tinha fome. Agora vou-te fazer rico, para teres fato fino, como este meu, relogio, cordão de oiro, e muito dinheiro... para te tinirem as algibeiras, como a mim. Hem!
Serás, serás bom rapaz, agora, mas animoso... Deixemos isso, e vamos ao que importa. Joze, eu vou para Demerara; foste quem me resolveu a ir. Minha mãe, pobre velhinha, cá fica sem ter mais ninguem senão minha irmã que é pobre, e pouco lhe pode valer. Acode-lhe tu, Joze. Que minha mãe ao menos tenha um pedaço de pão para matar a fome.
Conta comigo.
Outra coisa te queria eu pedir; mas essa...
Dize, que eu sou um bom amigo.
Creio que és, sim. Mas tens sido sempre tão fallador, homem...
Injustiça no cazo. Eu guardo um segredo como ninguem
Vé lá o que fazes: o que vou dizer é segredo. Gosto muito de Joanninha...{D1. Pg. 18}
Ah! ah! Eu já desconfiava disso. Tens bom gosto, que a pequena é bonita... e, de mais a mais, vem a ter de seu, em o pae morrendo.—Maganão!
Pobre a queria eu, para me poder já cazar com a minha Joanninha. Emfim, se a sorte me ajudar, hei de tambem um dia ter alguma coisa de meu, e então a pedirei ao pae.
Bem pensado—Mas vamos ao cazo; o que me queres tu?
Quero que procures no correio as minhas cartas, e que as entregues a Joanninha, em muito segredo, sem que o pae o saiba.
Fia-te em mim. Um amigo vê-se nas occaziões. Santa palavra!
Obrigado, obrigado, Joze. Nunca te poderei pagar o muito que te devo. Agora mais um favor.
Venha lá mais esse...
É o ultimo, tem paciencia. Esta noite... d'aqui a uma hora talvez, vou para bordo, e de lá já não volto, já não torno a fallar com minha mãe. Aqui tens vinte patacas, que lhe deixo: tu mesmo lh'as entregarás em mão propria.
Ahi vem ella. D'ali, da banda da Igreja.
(Dando-lhe dinheiro.) Pois vou-me, antes que{D1. Pg. 19} ella chegue; não tenho cá dentro força, para lhe fallar agora. Dize-lhe que fui no bote fazer um frete até ao Funchal. Amanhã lhe contarás a verdade. Adeus, Joze. Não te esqueças do promettido. (Estendendo os braços para o lado donde, vem Maria das Dores.) Mãe, mãe! A tua benção, mãe; para que Nossa Senhora me não desampare! (Sae.)
José Velhaco, só.
Os diabos te levem, para que não voltes mais. Ah! Ah! e deixou-me vinte patacas das trinta que recebeu! És tolo, meu Luiz do Campanario. Vinte patacas que estão aqui na minha algibeira, com trinta que hei de receber ámanhã do bom homem Carlos Bad, honrado negociante de carne branca, fazem cincoenta patacas—É barato. Estou roubado. Um escravo preto custa muito mais agora, depois que os inglezes se declararam protectores dos pretos; e o Luiz vale bem dois negros de Angola—Viva... viva...—como lhe chamam elles, os inglezes?—Viva a philan... a philantropia que em vez de escravos negros, vae fazendo os brancos escravos. A cor pouco faz ao caso; mas escravos ha de havel-os, em quanto houver homens com fome, em quanto houver miseria no mundo. Santa palavra! O dinheiro é que é a liberdade! Viva o dinheiro!... viva o rei dinheiro!... Irei ficando com as vinte patacas do Luiz, em vez de as dar á velha que ahi vem. Só para o enterro é que ella precisa de dinheiro, agora.{D1. Pg. 20}
José Velhaco e Maria das Dores
Ora salve Deus a sr.ª Maria das Dores.
Deus lhe dê muito boas tardes, sr. Joze. Não estava agora aqui o meu Luiz?—Pareceu-me vel-o.
Estava aqui, mas foi-se, sr.ª Maria. O rapaz anda com a cabeça desarranjada, não lhe parece?
O rapaz anda triste, porque lhe custa a levar a miseria. Eu bem lhe tenho prégado, que é vontade de Deus que assim seja, e que elle se deve ir conformando com a vontade de quem tudo póde. Bem velha estou eu, e nunca tive na minha vida uma hora talvez, de que se possa diser «bensa-te Deus:» pois olhe, assim mesmo com paciencia cá tenho ido andando. Se Deus me conservar o meu Luiz, á hora da morte hei de louvar a Deus, por me ter mandado a este valle de lagrimas.
Aquella falta de humildade, com que o Luiz leva a sua cruz, é peccado, diz bem sr.ª Maria.
Eu não disse que o meu filho tinha peccado. Nem o disse, nem o penso.—Hoje em dia, não sei porque, todos os rapazes querem ser mais do que foram seus paes, e por isso tem ido acabando aquelle respeito que n'outro tempo havia aos srs. morgados. Em tudo isto anda o dedo{D1. Pg. 21} de Deus. Ou o mundo está para acabar, ou, senão, vae levar tudo uma grande volta.
Está muito intendida em politicas, sr.ª Maria das Dores! Tambem lê os periodicos?
Não leio, não me ensinaram a ler.
Dizem por ahi que é bruxa; saberá isso por artes...
Calle-se, Joze. Vae-te t'arrenego, hoje é sabbado. De quando em quando oiço contar as coisas que se passam por esse mundo ao nosso vigario, e fazem-me scismar. Acho rasão ao meu Luiz quando se queixa da sorte, mas nunca lh'o digo. Quem trabalha deve ter, ao menos, tanto como quem não trabalha mas nasceu morgado. Em quanto não for assim não vae o mundo ás direitas.
Pois as impaciencias do nosso Luiz hão de lhe dar na cabeça. Agora, quando a viu, sr.ª Maria, fugiu; e talvez um dia fuja de todo.
Jesus, Santo nome de Jesus! Se elle me deixasse morria. Olhe Joze, tem-me morrido todos os meus, pae, mãe, irmãos, e o meu pobre marido, e eu fui ficando—Deus sabe para que.—Mas agora, se me faltasse o meu Luiz, a isso não resistia.
Deve estar preparada para tudo.
Porque?{D1. Pg. 22}
Eu não sei nada... ao certo: mas o Luiz tem uma alma independente como a minha, senhora Maria—e pode ser que elle um dia faça como eu fiz, que vá por esse mundo fóra em busca de fortuna. Ora como nem todos são egualmente felizes...
Talvez elle por lá fique! Nada, o meu Luiz não se vae, não me deixa.
O desejo de ser rico, de se ver bem tratado por esses senhores morgados, que lhe chamam agora o villão; o desejo de deixar de ser um villão para ser o sr. Luiz do Campanario, estimado por ter dinheiro, comprimentado pelos morgados por lhes poder emprestar algumas patacas; este desejo de abater os outros e de se exaltar a si póde muito. O dinheiro, sr.ª Maria, levanta os humildes, faz fidalgos os vilões. Ah! ah! Santa palavra!
Isso são maus sentimentos, que o meu Luiz não tem. Se lhe custa o ser pobre é por me não poder fazer feliz a mim, e a todos os seus. O meu Luiz é bom, foi sempre bom desde creança. Esses sentimentos de que falla, Joze, só os pode ter um mau homem, um homem sem honra e sem vergonha.
É... será verdade. Um homem sem vergonha... Eu cá sim, eu nunca tive sentimentos taes... porque sou...
Joze, Joze, sempre teve—desde pequeno que{D1. Pg. 23} o conheço—propensão para o mal. Preguiçoso, e mau, foi-o sempre. Nunca pensei que pelo trabalho honrado se fizesse rico; mas em fim assim aconteceu, e como aconteceu, Deus o sabe. Sou velha, e hei de diser a verdade. Anda sempre desde que veio de Demerara, a metter na cabeça a todos os rapazes, e ás raparigas até, que emigrem da Madeira: e quando desapparecem seis ou sete apparece o sr. Joze a comprar uma casa ou uma fazenda, ou com mais um cordão de oiro ao pescoço. Murmura-se por ahi de tudo isto...
Invejosos!
Pode ser, talvez. Mas se o meu Luiz se for, é a você que eu ponho as culpas.
Porque? Pois não podem outros persuadil-o a que emigre?
Podem. Mas eu tanto me hei de queixar, que se saberá a verdade. A voz da velha Maria das Dores ha de ouvir-se por toda a Madeira, e chegar até aos ouvidos de quem governa. Mas não... o meu filho não me deixa.
Talvez que não. Adeus sr.ª Maria das Dores, veja se descança, faz-lhe mal zangar-se—Ah! ah! ah! Está velha para se zangar assim.
Maria das Dores
O meu Luiz não me deixa, não me desampara, eu morria se me visse sem elle... Nossa{D1. Pg. 24} Senhora me livre desta ultima dôr; esta era a ultima, porque eu morria. Se tem de acontecer essa desgraça, Deus, me leve antes para si (Vae sentar-se sobre um pedaço de muro, de modo que fica quasi escondida por detraz de uma moita). Ave Maria cheia de graça, o senhor é comvosco... (Continua a murmurar orações.)
A mesma—Antonio Prudente—O Vigario—Joanninha
Tenho gosto em ver os bons resultados da sua labotação, sr. Antonio. Fazendas bem amanhadas, as suas fructas excellentes; muita cana de assucar, já para substituir o vinho que nos falta, e flores por toda a parte para alindar tudo... As flores são aqui da nossa Joanninha, que as sabe escolher bonitas como ella.
Ora! sr. Vigario.
Não se envergonhe a menina Joanninha por ser bonita, e gostar de flores. Se eu tivesse uma sobrinha, com estas duas qualidades a queria. Mas aquelle desmasellado de meu irmão não me quiz dar senão dois sobrinhos, paciencia! Elles são ambos bons rapazes; mas o segundo, o Fernando, o mais novo, é mesmo uma joia, e eu quero-lhe devéras.
E merece-o o menino, porque muito bom é.{D1. Pg. 25}
Merece muito, mas, como fez o crime de vir ao mundo mais tarde do que o outro, ha de ser pobre toda a vida, e o irmão morgado e rico. Esta instituição dos morgados foi feita por quem não tinha entranhas de pae, nem consciencia de bom christão; e aqui na Madeira, sobre tudo, foi estabelecida por quem não entendia nada de agricultura, e não tinha nem amor á terra que dá os fructos, nem aos homens que a cultivam. Meu irmão, o morgado Bittencourt, não quer escutar estas verdades: mas eu só lhes recomendo, a elle, e aos outros morgados, que comparem as fazendas livres com as que estão opprimidas pelos vinculos, e que digam, depois de verem nas fazendas livres tudo alegre, verde, bem cultivado; e nas vinculadas tudo miseravel e coberto de colonos famintos; que digam que isto dos morgados não é um absurdo funesto, sustentado apenas por vaidades fofas e impios preconceitos.—Este flagello dos vinculos ha de acabar, e com elle o outro flagello tambem, a emigração dos madeirenses.
E quando acabará ella sr. Vigario!?
Quando a terra fôr de quem trabalha, e não de quem vive na ociosidade e na ignorancia: quando uma organisação iniqua da propriedade não affastar da inteira posse da terra os caseiros em nome dos vinculos, e os morgados em nome das bemfeitorias; quando a justiça fôr a base das leis; quando nesta ilha, que a natureza fez um paraizo, acabarem esses restos de escravidão, que ainda hoje existem pezando sobre{D1. Pg. 26} o homem do povo e unidos ao nome de villão. Os grandes padecimentos do povo hão de acabar, quando a instrucção esclarecer o espirito de todos; quando no mundo civilisado—porque o mal não existe só aqui na ilha—se não soffismar a verdade, e se não confundir a justiça com o interesse; quando a religião, a virtude, a liberdade, estiverem acima de tudo.—Mas esse tempo, se é que tem de chegar, ainda vem longe. Finje-se hoje querer acabar com a escravidão no mundo; assignam-se tratados para abolir o trafico dos negros barbaros; e deixa-se que a seducção e a miseria arraste os brancos a captiveiro mais cruel.
V. s.ª tem rasão de certo no que diz. Eu não percebo talvez todo o sentido das suas palavras, sr. vigario, mas a consciencia diz-me que são verdadeiras.
O lidar com a natureza esclarece a rasão; e não ha nada que mais luz dê ao espirito, do que a probidade e a honradez Antonio Prudente, eu bem sei que entende o que lhe disse.
A verdade é para todos.
Bravo! fallou bem a nossa Joanninha, a minha afilhada Joanninha. Fui eu que lhe ensinei a ler, a doutrina e tudo, e não perdi o meu tempo.
O sr. Vigario sempre foi bom para todos, mas para a minha filha... deve-lhe tudo...{D1. Pg. 27}
Tomára eu tempo para poder ensinar a ler todas as creanças da freguezia. Eu entendo que um dos mais santos deveres do padre é instruir e educar as creanças. Como lhe ia dizendo ha pouco, Antonio, os males são muitos, e a todos é preciso dar remedio prompto. Devéras, em quanto os homens de bem cá das aldeias não ajudarem esses senhores politicos de Lisboa a fazer as leis, nunca as ha de haver que prestem.
É o que eu tenho pensado muitas vezes; salvo o respeito devido a quem manda.
Sobre estas emigrações algumas medidas se teem tomado. Expedientes, meros expedientes! Prohibe-se aos pobres colonos o embarcarem sem passaporte, põe-se um navio de guerra a guardar a ilha, ameaçam-se os alliciadores, e no fim de tudo embarca quem quer sem passaporte, o navio não guarda nem pode guardar nada, e os aliciadores vivem alegres e enriquecem. Não é prohibindo, é concedendo, que se ha de acabar com a emigração; não é fechando o povo dentro da ilha, como n'um carcere, é dando a liberdade aos homens e á terra, que se ha de combater a febre que agita neste momento a ilha. Os que fazem leis só pensam em castigar e prohibir. Não basta. É preciso aconselhar e ajudar os pobres a viver; é preciso que todos na ilha da Madeira saibam o que padecem os desgraçados, que a esperança arrasta a essas terras dos inglezes, em que os aguarda a escravidão, onde as febres lhes minam a saude, e a cubiça de vis{D1. Pg. 28} especuladores lhes arranca das mãos o pão, com que elles procuram enganar a fome.
(Com susto.) Pois tanto soffrem os que vão a Demerara?
Muito mais do que se pensa.
É preciso desenganar o povo; porque todos os dias desapparece d'entre nós algum rapaz dos melhores, dos mais trabalhadores e dos mais queridos.
Ás vezes são familias inteiras; outras, um chefe de familia deixa mulher e filhos; e até ha filhos que desamparam seus paes, e isto quando estão com os pés na sepultura.
Agora mesmo tenho eu medo, que um dos bons rapazes da nossa freguezia fuja para Demerara, deixando a mãe velha e pobre quasi ao desamparo.
E quem é, pae?
O Luiz do Campanario.
Isso não póde ser.
(Levantando-se e vindo á frente da scena.) Não pode ser. O meu Luiz não me deixa aqui só: não me pode abandonar agora... quasi á hora da morte.{D1. Pg. 29}
É uma desconfiança que tenho, e nada mais. Eu não sei...
Amanhã... esta noite mesmo lhe fallarei; e se elle tem idéas de emigrar, tirar-lhas-hei da cabeça.
Deos o abençoe, sr. Vigario, pelo amor que tem aos pobres. Deos lh'o pagará, meu senhor Vigario.
Os mesmos e Joze Velhaco
Sr.ª Maria das Dores... Ah! (tirando o chapeo.) Boas tardes, sr. Vigario. Estou ao seu dispor.
(Com mau modo.) Bons tardes, sr. Joze.
V. S.ª está zangado, ao que parece.
Talvez.
É que eu... eu trazia uma noticia aqui á tia Maria das Dores...
Pois dê-lhe a noticia.
Diga, homem.
Não tenha pressa de saber.
Falle, sr. Joze.{D1. Pg. 30}
O Luiz, o seu Luiz, foi-se.
Para onde?
Para Demerara.
É mentira.
Jezus!
Não viram hoje um navio a bordejar ao largo? Pois para elle foi, e nelle estará a esta hora o nosso Luiz.
Como soube...
Disseram-mo agora mesmo uns barqueiros, que o viram partir para bordo.
E não se tratará de acabar por uma vez com esta emigração, que faz horror?
Ah! ah! O sr. governo está dormindo ha trinta annos. Quando accordar ha de dar remedio a todos os males.
Cahe o panno.
Fim do 1.º acto{D1. Pg. 31}
A casa de Antonio Prudente. Porta no fundo, outra porta á esquerda. Á direita uma janella.
Antonio Prudente e Joze Velhaco
Veja vmc. se a resolve, sr. Antonio. Eu tenho hoje bastantes terras, umas casas na cidade, e andam-me emprestados e a vencer bons juros uns poucos de centos de patacas. Para sua filha não me parece que eu seja um mau casamento. Ainda sou moço... e com dinheiro, é o mais que uma rapariga póde desejar.
Não sei o que a Joanninha tem contra você, Joze, mas é certo que ella fica mal comigo,—olhe que é verdade,—fica mal comigo em eu lhe fallando neste casamento. A mim agrada-me, Você é um homem que sabe fazer fortuna. Hontem por assim dizer pobre, e hoje rico.
Pois ha um anno que ando a pertender este casamento, e elle sem se fazer. Agora é tempo de acabar com isto. Está-me parecendo que Joanninha não faz já tanta resistencia. Lembre-se que é pae, sr. Antonio, e que pode mandar em vez de pedir. É para bem da sua Joanninha. Porque eu conheço-me, e vmc. tambem me conhece, ein? conheço-me e sei que poucos são capazes, como eu, de fazer feliz uma mulher. Santa palavra!{D1. Pg. 32}
Eu não duvido dos seus bons sentimentos, de que venha a ser menos mau pae de familia. É certo... é certo—deixe-me dizer o que penso—que todos na freguezia o vêem com maus olhos, desde que o Luiz do Campanario foi para Demerara; e quando algum rapaz desapparece daqui, dizem uns—foi o Joze Velhaco quem o enganou, o Joze Velhaco vendeu-se aos inglezes—outros dizem—o Joze Velhaco é bom homem, dá dinheiro aos pobres, empresta dinheiro aos morgados, e faz muitas festas a Nossa Senhora...
E vmc. o que diz?
Eu acredito nos que dizem bem; mas minha filha so dá credito aos que dizem mal.
É a velha, a bruxa da Maria das Dores, quem lhe mette essas creancices na cabeça. É preciso, sr. Antonio, pôr a excommungada da velha da sua casa para fora.
Isso não faço eu. Pôr fora da minha caza uma pobre velha, que é tão desgraçada, uma mulher que serviu de mãe á minha Joanninha! Oh! sr. Joze, que eu lhe não ouça dizer outra vez coisas dessas; que, sobre tudo, o não saiba a minha filha. Estava desmanchado o casamento, se Joanninha tal soubesse!
Eu queria... sim, como sei que Joanninha é muito amiga da velha Maria das Dores, queria ver... experimentar se vmc. era capaz de ir contra os desejos da sua filha. Vmc. bem percebe?{D1. Pg. 33} Eu não sou muito amigo da Maria das Dores; a velha anda por ahi a desacreditar-me; diz que fui eu que lhe seduzi o filho, que sou isto, que sou aquillo. Coisas que nem eu sei. E quando a gente está innocente, ressente-se destes falsos testemunhos.
Quando se está innocente.
Como eu, é verdade, ressente-se a gente. Não fallemos mais nisso, que é uma coisa que me faz doer o coração. O que é preciso é que este casamento se faça; porque a Joanninha é mesmo uma mulher propria para mim: sabe ler, escrever, e é bem creada. Aqui em toda a freguezia não ha uma rapariga, que se lhe possa comparar.
A Joanninha é mesmo uma flor! Ah! ah!
Mas, emfim, se vmc. não tem força para governar a sua casa, para fazer com que sua filha lhe obedeça, irei a outra parte buscar mulher, com quem me case. Não faltará quem me queira. No Funchal talvez ache até algum morgado que me dê uma filha. Com dinheiro, nestes tempos, tudo se pode alcançar: e eu, em sendo commendador, posso casar com quem eu quizer, e ser até deputado, representante da Madeira. Ah! Ah! Ah!
(Rindo muito.) Que coisas que não hade dizer o sr. deputado Joze Velhaco!
(Em tom de discurso.) É preciso acabar com este odio á chamada escravatura branca: este odio é uma{D1. Pg. 34} vergonha para a Madeira, uma deshonra para a Madeira, uma deshonra para os portuguezes. Esta escravatura não é mais do que a liberdade, que todos devem ter de ir procurar fortuna a qualquer parte do mundo. Eu mesmo fui enriquecer-me a Demerara. E quando os calumniadores me accuzarem, de querer que dure a emigração, para ganhar dinheiro com ella, heide gritar com furor. A minha vida todos a conhecem, é simples e pura. Todos sabem que ganhei honradamente o que tenho, e só almas damnadas me podem levantar falsos testemunhos; porque... porque, a innocencia é a innocencia, e os homens politicos sabem, melhor do que ninguem, o que é ser innocente, e o que é fingir innocencia; porque a moralidade dos politicos...
Viva! É eloquente, o meu genro, o sr. deputado. E da sua innocencia falla muito, e falla bem.
Então, decide-se o casamento?
Está decidido, e hade ser já.
Falle a Joanninha.
Logo, em ella voltando para casa, hade decidir-se o negocio.
E ella é quem o hade decidir?
Não, heide ser eu. Está decidido, e eu logo não faço senão mandar. (Com violencia.)
Mandar, sem soffrer observações.{D1. Pg. 35}
Como um pai a uma filha desobediente.
Bom, bom! Logo venho pelo resultado. (Sae.)
É preciso ser severo. Acabou-se; o que custa são as primeiras palavras, depois as outras vêem por si. É para bem da minha Joanninha; que hade, quando for velha, gostar de ser dona de uma boa propriedade, com terras de pão, vinha e pomar. O Joze Velhaco é um rapaz de cabeça, como se quer. Hade fazer-se commendador, e tudo mais que elle diz. Fallam por ahi mal do Joze; mas não teem razão: elle tem-me provado que de tudo está innocente. O padre Vigario tambem não é amigo delle... mas não tem razão, não tem. Querem pôr ao pobre do meu genro as culpas, do que succede nesta terra. (Ouve-se a voz de Joanninha cantando). Ahi vem ella, a minha filha. Animo, Antonio Prudente. Vamos; deves-te fazer respeitar e obedecer por tua filha.
O mesmo e Joanninha
Vens muito alegre, Joanninha.
Eu, pae!{D1. Pg. 36}
Vinhas a trovar, como se estivesses na festa do Monte.
Á Senhora do Monte vinha trovando. Mas é a tristeza e não a alegria que me faz cantar.
(Perdendo um pouco a severidade.) E diziam as trovas...
Senhora do Monte
Trazei-me o meu bem,
Com tristezas destas
Não pode ninguem.
Senhora do Monte
Trazei-mo depressa,
Fazei que o meu noivo
De mim não se esqueça.
Sem elle, alegria
E paz eu perdi,
Senhora do Monte
Trazei-m'o aqui.
Pois fez-te a vontade a Senhora do Monte. Perto tens o teu noivo.
(Com alegria.) Elle! Pois chegou?
Ha muito que chegou, e ha muito que te deseja para mulher.
Ai! Pae, ainda me torna a fallar nesse Joze, que é a praga desta freguezia?{D1. Pg. 37}
(Colerico.) Torno a fallar-te no Joze, mas é pela ultima vez. Quero que cases com elle; e não consinto que me digas que não. Hasde obedecer a teu pae.
N'isso, não.
Joanna, eu não quero ouvir dizer que não, quando eu mando.
Esse homem anda enganando gente, para a vender aos inglezes. Assim diz o sr. padre Vigario, e todos...
É mentira o que dizem delle. Em sendo teu marido, todos se callam logo. O meu nome, o nome de Antonio Prudente, é um nome honrado; e ninguem é capaz de pensar mal do homem, que fôr marido de minha filha.
Meu querido pae, escute-me. Nunca deixou de me fazer a vontade em tudo, e agora...
Muito mal fiz, e muito me arrependo. O mimo é que te perdeu.
Se eu tivesse mãe, a ella me havia de queixar...
Tua mãe, Deos a tenha em gloria, nunca me desobedeceu. Sabia melhor o que uma mulher deve a seu marido, do que tu sabes o que uma filha deve a seu pae.{D1. Pg. 38}
Antes morrer, antes deitar-me ahi ao mar, do que eu casar-me com tal homem.
Joanna, não me obrigues a tratar-te como mereces. Eu bem sei quem te anda mettendo essas doidices na cabeça, é a velha Maria das Dores. É como me paga os beneficios que lhe tenho feito. Mas á velha ponho-a na rua, e a ti levo-te á igreja por força para te casares. É demais, é demais isto, Joanna.
Pae, pelo amor de Deos não me perca.... (Cae de joelhos.)
As raparigas não sabem o que querem. Eu para ti ganhei toda essa terra, que ahi está ao pé da nossa casa; quero juntar-lhe tudo o que vai d'aqui até ao paçal do Vigario. Isto só se póde conseguir casando tu com o Joze Velhaco. Fica, um morgado, mesmo! Quero-te rica, Joanna; quando tiveres filhos hasde abençoar-me por te ter obrigado a fazer este casamento. Choras agora; depois hasde rir.
Pae, não me desgrace.
O casamento hade fazer-se. Já dei a minha palavra, e basta. É callar e obedecer. (Sae commovido, e escondendo as lagrimas.)
Joanninha, depois Maria das Dores
Pae!... pae!... Elle não me dá ouvidos, e eu{D1. Pg. 39} morro aqui de pura dor... que me trespassa o coração... Santo nome de Jesus, valei-me.
(Entrando.) Joanninha, teu pae saiu agora mesmo daqui zangado, perdido de cabeça. Nem sequer me viu! Que tem elle? Que succedeu, que te vejo toda chorosa?
Estou perdida, tia Maria das Dores... Meu pae já me não parece o mesmo, Aquelle Joze Velhaco embruxou-o.
Tornou-te a fallar no casamento?
Quer meu pae, que o casamento se faça já, sem mais tardar. E nem as minhas lagrimas lhe fizeram abalo. Ralhou comigo, e disse-me que elle mandava e não queria ser desobedecido.
Se não fosse com o Joze, dizia-te Joanninha que o remedio era callar, e obedecer. És boa filha, e o Antonio é teu pae. Mas com semelhante homem, com um homem mau, infame, não te podes casar.
Mas que se hade fazer?
Não sei, não sei, mas irei fallar ao sr. Vigario... Elle desconfia do Joze Velhaco, fallará a teu pai, e talvez o convença. Só o Antonio é quem na freguezia anda illudido com tal homem: Deus lhe perdoe o mal que me tem feito, e as lagrimas que me fez chorar. Ai, o meu Luiz, o meu Luiz... se ainda será vivo?{D1. Pg. 40}
E sem noticias delle!... ha um anno que se foi!
Nem carta, nem noticias! Se morreria o meu querido filho? Tenho ido umas poucas de vezes ao correio do Funchal, e dizem-me sempre que não ha cartas, isto quer dizer muito. Devemos estar preparadas para uma grande dor, minha Joanninha.
Ai, não diga tal.
Porque o não heide dizer, se o sinto, se o coração m'o diz... se parece que me diz que elle morreu.
Se o Luiz morreu, que hei de eu fazer? Elle era o meu noivo; por elle prometti esperar. Se elle não voltar, fico toda a vida solteira.
Solteira... não pode ser, seria dar um grande desgosto a teu pae, e condemnares-te a ti a uma triste solidão. Uma mulher sem filhos anda como desamparada neste mundo, é como uma arvore sem fructos nem flores. Nós as mulheres viemos a este mundo para cuidar das criancinhas, para depois, quando somos velhas, como eu sou, sermos cuidadas e queridas pelos filhos que criámos. E eu já não tenho filho! Morreu o meu Luiz. E Deos ainda me não chamou para si!
Agora, que nem me atrevo já a ter esperança de o tornar a ver, sinto que mais lhe quero do que nunca. Para chorar por elle posso viver; mas para mulher de outro não.{D1. Pg. 41}
Joanninha, escuta. Ninguem quer mais do que eu ao meu Luiz; sei que elle te amava, e que em seres sua esposa estava toda a sua esperança, mas... se morreu, de que serve desobedeceres a teu pae... Basta que eu soffra... e tu, filha. Que não seja desassocegado no fim da vida o bom Antonio Prudente, do qual não houve nunca rasão de queixa.
Então quer que eu case com o Joze Velhaco!
Com esse não. Mas com outro...
E se Luiz não morreu?
Que esperança podemos ter? Ha um anno que se foi.
Casar-me eu, tia Maria das Dores, e vel-o depois desembarcar ahi! Com que cara lhe havia de apparecer?... e que olhos havia de pôr em meu marido! E depois, com o Joze Velhaco me quer meu pae casar; e com elle só morta me levarão á igreja.
As mesmas e Joze Velhaco.
É essa a sua ultima resolução, menina Joanninha?—(As duas mulheres dão um grito de terror.) Não se assustem, não tenham medo, não sou nenhum diabo.
Bem o parece!{D1. Pg. 42}
Foi vmc. Maria das Dores, quem ensinou ésta rapariga a desobedecer a seu pai? Um dia a justiça hade castigar as bruxas velhas, que andam nesta ilha a perder as raparigas honestas.
Cal-te... Deos me perdoe! Cal-te!..
Pelos seus peccados a castigou Deos. O filho que tinha deixou-a, e lá morreu por Demerara, sem se lembrar de sua mãe.
Morreu...
Sei que morreu; mas pouco importa. Não se perdeu coisa boa.
Dizer assim mal do meu Luiz... que elle matou! Se Deos me desse forças!...
Matava-me!? Ah! ah! que santa alma a desta velha! E anda semelhante mulher sempre a resmungar orações, de pela manhã até á noite! São pragas que ella nos roga, a bruxa!
Sr. Joze o que se atreve a dizer? Não sabe que a tia Maria das Dores é a minha segunda mãe?... que todos cá na freguezia a respeitam?
Sei que, por causa das calumnias, e dos falsos testemunhos que me levantou, não me quer a menina Joanninha por marido, e paga com ingratidões o grande amor que lhe eu tenho.
Amor que mette medo! É homem de ruim{D1. Pg. 43} alma sr. Joze... de ruim alma, e má consciencia!
Joanninha! (Querendo pegar-lhe na mão.) Não se deixe enganar pelas mentiras que dizem por ahi de mim... Sempre fui bom rapaz... todos o sabem. Se a minha riqueza mette inveja aos outros, que culpa tenho eu?
Não faz inveja, faz horror, essa riqueza ganha a vender aos inglezes os pobres da Madeira.
Calle-se, mulher; senão!..
Ameaças agora!
Joanninha, não demos ouvidos a esta doida. Fallemos serio do que nos importa. Seu pae, Joanninha, quer o nosso casamento; e tem por calumnias quanto por ahi se diz de mim. Elle sabe que sou capaz de a fazer feliz.
Só atada de mãos e pés irei á igreja, mas lá heide dizer que não... quando me deem por marido um homem que aborreço.
Joanna, veja o que diz! Seu pae pode obrigal-a...
Matar-me é que elle pode.
Prende-a uma promessa, bem sei, Joanninha. (Brandamente.) Fica-lhe bem a firmeza: comigo tambem a terá. Mas de que serve teimar nesse amor a um homem, que já morreu?{D1. Pg. 44}
Não, não morreu. Não vé que me afflige... que trespassa aquella pobre mãe, dizendo isso?
Não accredito no que elle diz, é mau homem... mente!
Hade ter castigo tanto atrevimento! Insultar com injurias, desacreditar com aleives, um cidadão honrado, que tem de seu, que vive com os morgados maiores da Madeira!
Todos te despresam!
(Levantando a mão com colera.) É de mais. Se te não callas...
Que faz Joze? Que se atreve a fazer?
Nada... por agora.
(Pegando nas mãos de Maria das Dores.) Venha, Maria das Dores, venha minha boa, minha santa mãe!... Vamo-nos desta casa, que não pode ser, que não é a nossa, em quanto semelhante homem aqui estiver.
Fizeste-me perder o meu filho; foste que m'o tiraste dos braços para o mandar como escravo a Demerara! O meu Luiz morreu... perdi o meu filho, e eu d'aqui a dias irei ter com elle. É de lá da cova, escuta bem Joze! é da cova, que ambos te amaldiçoamos, para que a tua alma não tenha socego, nem o teu corpo descanço, em quanto vivo fores; para que, depois{D1. Pg. 45} da morte, a justiça de Deos te lance nos infernos. (Sáem as duas.)
Joze, só
Está doida, doida varrida a velha. E eu que ia perdendo a cabeça; como se um homem de juizo, e conhecedor do mundo, podesse perder a cabeça nestas alturas! Santa palavra! Um homem sempre é um homem, e não faz caso de rabugices de bruxas tontas. O que necessito, e vou fazer, é gastar umas poucas de patacas, e mettel-a no hospital por doida. Logo vi que da mão de Maria das Dores não vinha cousa boa! Tenho de gastar o dinheiro que o filho me rendeu, para agora alojar a mãe no hospital, ou na cadeia. Vamos fazer calar esta matraca, que me anda sempre a matinar os ouvidos. O que importa, em tudo isto, é que a Joanninha consinta no casamento. Gosto della, e gosto muito, e nunca pensei que tal podesse acontecer-me!. (Rindo.) Ah! ah! a não ser o bom pedaço de terra, que tem o pae, não eras tu meu Joze Velhaco capaz de intender o desasocego, em que anda o teu coração! A idéa de tirar do correio todas as cartas, que o Luiz escreveu á mãe e á Joanninha, foi famosa! Estão crentes, que elle morreu, e a esta hora talvez não estejam enganadas! Graças a Deus morre-se depressa em Demerara, quando se trabalha no campo, ao sól, e com o estomago vazio; e o Luiz não o havia de traser cheio. Ésta minha cabeça é uma{D1. Pg. 46} grande cabeça, e eu ainda heide de ser coiza grande no mundo! Meu pae mandou-me aprender a lêr e a escrever; aproveitarei a boa lembrança de quem já lá está na terra da verdade. Joanninha hade ser minha, ou não heide chamar-me Joze... Velhaco. Santa palavra!
Joze Velhaco e Joaquim.
(Batendo á porta.) Ólá, menina Joanninha!
Não está cá a menina, saiu.
Ah! está ahi vmc. sr. Joze? Eu vinha procurar a Maria das Dores. Tambem não está aqui?
Esteve, mas foi-se. E que lhe queria você á Maria das Dores?
Trazia-lhe um recado de meu amo.
Do sr. Vigario?
Sim senhor, lá do sr. Vigario é que o recado é: o sr. Vigario quer fallar á velha.
Para que?
Isso não sei eu. Para coiza grande é, porque me disse meu amo que viesse correndo.
(Á parte.) Que será? O Vigario em tudo se mette.{D1. Pg. 47}
(Alto.) Então não sabe o que o nosso Vigario quer á Maria das Dores? Em! Joaquim?
Olhe vmc.; eu, verdade, verdade, não sei o que elle tem que lhe dizer; mas parece-me...
O que?
A velha foi outro dia fallar com o sr. Vigario, e esteve mais de uma hora só com elle.
O que disseram?
Não sei. Pois se elles estiveram sós, como havia de saber o que disseram? Minha mulher, que é curiosa deveras, lá descobrio que ella quer entrar para o azylo dos pobres, no Funchal; e por isso meu amo lhe fallou o outro dia á triste da velha, e agora lhe quer fallar outra vez.
Hade ser, hade ser isso. (Á parte.) Fico mais alliviado; já não precizo gastar o dinheiro em metter a Maria das Dores no hospital, por doida. (Alto.) Ora, Sr. Joaquim, ja pensou n'aquelle negocio, em que outro dia lhe fallei? Está disposto a ir fazer fortuna?
Estou velho para tentar fortuna, sr. Joze. Tenho 40 annos feitos.
Parece um rapaz de 20, o nosso Joaquim! E depois tem um filho que d'aqui a dois dias está um homemzinho, que o póde ajudar.{D1. Pg. 48}
O rapaz não levo eu para Demerara. A mim posso-me arriscar, mas a elle...
Olhe sr. Joaquim, que não ha perigo. Tenho vontade de o fazer feliz... tenho confiança em você.... conheceu-me de pequeno, e tenho-lhe amizade. Não sei se é homem de segredo, sr. Joaquim.
Pode fiar-se. Segredo, que oiço, é como se caisse ao mar, ninguem o sabe. Para amigos sou um homem como se quer. Sim: lá nisso é fallarem-me, e prompto; aqui está o Joaquim ás ordens.
Se apparecesse agora um homem, que quizesse fazer-se rico em pouco tempo, sem trabalho, havia occasião.
Eu quero; oh! se quero.
Pois toque, Joaquim; mas jure guardar segredo sobre o que vou dizer.
Está promettido.
O que vou dizer-lhe é de amigo. Preciza-se de um homem.... você é de segredo? Em?
Oh! homem, não me conhece ainda?
Veja la. Se este segredo se souber, só você o pode ter contado; e ha gente de muitas posses, que o quer bem guardado. (Com um gesto de{D1. Pg. 49} ameaça.) Sempre se póde fazer callar um homem.
Bem o intendo. Póde fallar sr. Joze. Não é o medo que me tapa a bocca.
(Assustado.) Então?...
(Rindo.) É... é a amizade, que lhe tenho...
Como ia dizendo: preciza-se de uma pessoa que vá a Demerara, homem de bom nome, e de influencia por estas freguezias. Você está no caso. Caseiro do sr. Vigario, e bem quisto por elle.... é quanto basta.
O meu nome, o nome do Joaquim do Vigario, é bem conhecido, ninguem tem que lhe dizer.
Pois ahi está; é isso mesmo.
Então querem que vá a Demerara?
Justo. Ir; estar lá um anno a comer e a beber á regalada, e voltar rico.
(Rindo.) Ah! ah! ah! Rico! E como?
Comendo, já lho disse. Comendo, dormindo e engordando.
Eh! eh! eh! Não me parece feia a historia! Está a mangar commigo sr. Joze? Em!{D1. Pg. 50}
Mangar, com o meu amigo Joaquim?! Isso é que não.
Eu cá intendo que se dê de comer a um porco, para depois o matar, mas a um homem.... Em Demerara comem gente?
(Rindo.) Está doido... Sr. Joaquim. Aquillo é a melhor terra deste mundo.
Que querem elles então?
Que volte para a Madeira, com dinheiro e saude, e diga depois, como eu, que Demerara é um céo aberto; que lá se enriquece á grande, e que um homem váe, e volta rico sem lhe custar nada.
E isso é assim para todos?
Não homem; para os felizes como nós. Pois este mundo fez-se para os felizes? Santa palavra!
(Rindo muito.) Agora... agora percebo—Ah! ah!... É boa! É como quem diz um chamariz; querem fazer de mim um chamariz?
Ainda bem que nos intendemos. Vai então para Demerara?
Para quando a partida?
No primeiro navio.{D1. Pg. 51}
Pois amanhã lhe dou a resposta.
Mas o segredo?...
Está dito.
Quer dormir sobre o cazo para depois se decidir?
É como diz. Este costume ficou-me de pequeno, dormir sobre todos os cazos, e em todos os cazos. Agora vou ao recado do sr. meu amo, vou procurar a tia Maria das Dores.
Vá, vá. E se poder saber o que o sr. vigario lhe quer, venha-mo contar.
Pois sim. Adeus, amigo Joze Velhaco.
Adeus. (Joaquim sáe.)
Joze, depois Antonio Prudente
Este é dos nossos. Meu de certo é; porque me hade render bom par de patacas. E digam que sou mau! Acabo de fazer a fortuna deste excellente pai de familia!—Ahi vem Antonio Prudente. Vamos resolvel-o por uma vez a governar a sua casa! (A Antonio que entra.) Ora já sei, sr. Antonio, que a sua Joanninha lhe não quer obedecer.{D1. Pg. 52}
Hade obedecer, que lho digo eu. Por tal vergonha não hade passar Antonio Prudente.
Encontrei-a com a velha, aqui. Disseram-me injurias, insultaram-me. A Maria das Dores repetiu-me uma duzia de vezes—ouvi-lho com estes ouvidos—repetiu-me, que Joanninha não casaria commigo; que o pae de Joanninha era um tolo—perdão sr. Antonio, eu não faço senão repetir—que era um tolo, um baboso, e que havia de fazer o que ellas quizessem.
Pois a velha disse isso?... diante de minha filha? Bem razão tinha, Joze, em me aconselhar que a puzesse na rua, á excommungada bruxa! Onde está a Maria das Dores, onde está minha filha?
Sairam ambas, depois de me carregarem de injurias.
Um tolo, um baboso, eu! Ou a Joanninha deixa de ser minha filha, ou o casamento hade fazer-se já. E para a rua a velha, que nem mais uma vez me porá os pés em casa.
Nada de violencias, sr. Antonio. Com geito é que as coisas se levam. Com sua filha rigor, mas violencia, não. E com a velha nada de injurias... o Vigario protege-a.
E que me importa a mim o Vigario? Não preciso de ninguem.{D1. Pg. 53}
Isso faz-lhe honra, sr. Antonio, mas sempre é bom ser prudente.
Hade fallar-se de mim na freguezia. Os paes hão de aprender a castigar as filhas desobedientes.
Ahi vem ellas, sua filha e a Maria das Dores. Vou-me; porque, se aqui me veem, não entram.
Deixe-as commigo.
Tenha moderação... paciencia!
Deixe-as commigo, já lho disse. (Joze sae.)
Antonio Prudente, Maria das Dores e Joanninha
Tolo e baboso! chamaram-me assim, minha filha, e a Maria das Dores, que me deve tanto! Agora veremos se eu sou homem com quem se brinque. (Ás duas que entram.) Venham ambas que temos que fallar.
(Assustada.) Que quer, pae?
A ti? já o sabes. Domingo casas, sem falta.
Pae... antes morrer.
Ou casas, ou ponho-te fóra, para nunca mais{D1. Pg. 54} saber de ti. Disseste mal de mim, chamaste nomes injuriosos a teu pai!... És má filha, e só te perdôo se me obedeceres.
Eu! nunca lhe faltei ao respeito, pai!
E não chama ella faltar ao respeito desobedecer-me e chamar-me... tolo.
Eu... É falso, é uma falsidade infame.
Calla-te.
Não trate assim sua filha, Antonio. A pobre rapariga, se tem culpa, é de chorar.
Ainda se atreve, Maria das Dores, a entrar nesta casa, e a fallar-me de Joanninha! Se ella é desobediente, e má filha, se diz mal de seu pae, quem a ensinou foi você, mulher.
Que diz, Antonio?
Foi quem ensinou Joanninha a faltar aos seus deveres; porque dantes era boa e docil. Mas isto hade acabar, e já. Nunca mais volte a minha casa, nunca mais falle com minha filha...
Põe-me fóra da sua casa? A mim, que lhe criei sua filha?..
É indigna de vir aqui. Anda perdendo as raparigas com maus conselhos.{D1. Pg. 55}
(Chorando.) Perdôo-lhe essas injurias, porque sei quem lhas ensinou.
Pois julga que Antonio Prudente?...
Penso que é bom e justo, e que a preversidade de um malvado, que o enganou, o traz assim mudado.
Não quero que em minha casa se diga mal de quem hade ser meu genro. Ponha-se fora mulher. Na rua já!
Vou-me embora. Nossa Senhora guarde a pobre Joanninha, e abra os olhos a este homem. (Maria das Dores vai para sair, quando apparece á porta de fundo o Vigario.)
Os mesmos e o Vigario
(Detendo Maria das Dores.) Antonio Prudente, que palavras são essas; porque o vejo com tanta colera? Porque põe fóra de casa Maria das Dores?
Anda desinquietando minha filha.
Desinquietando sua filha!..
Foi ella que desvairou Joanninha, que de pequena foi sempre temente a Deos e obediente a seu{D1. Pg. 56} pae, e lhe ensinou o atrevimento, e a desobediencia!
Isso é engano, de certo. Anda um crime nisto. Antonio, o seu nome foi sempre respeitado; todos até hoje o têem estimado; porque é homem de bem, caridozo e justo. Mas, em se sabendo que pôz fóra de casa a mulher que criou sua filha, em se sabendo que maltractou uma triste viuva, uma desgraçada, velha, doente, quebrada pela dor, e opprimida pela mizeria, todos hão de pensar que era falso o conceito, que formavam a seu respeito.
Sr. Vigario, essas palavras são injurias.
Não faço injurias, digo verdades.
Mas não sabe...
Sei que Maria das Dores sempre foi verdadeira, e que tem soffrido a desgraça com a paciencia de uma santa. Maria das Dores, diga-nos a verdade, em consciencia fez a este homem a offensa de que elle se queixa?
(Suffocada pelas lagrimas.) Não. Pela vida de meu filho, se elle vive... pela sua alma, se Deos o chamou, juro que não.
Ouvio, Antonio? Um homem, a quem os annos fizeram brancos os cabellos, a quem os trabalhos da vida ennobreceram o coração, acaba de se deshonrar, pizando aos pés o que ha de mais sagrado no mundo: uma mãe desventurada.{D1. Pg. 57}
Sr. eu... pensei... acreditei...
Acreditou uma calumnia. Neste mundo não basta ser passivamente honrado, Antonio; a virtude era facil assim. É preciso resistir tambem ás seducções dos maus, ter força para fazer justiça a todos, e não obedecer ás paixões, que sempre, em todas as idades, se levantam no coração, e cegam o espirito.
Mas minha filha recusa obedecer-me.
Porque offendeste teu pae, Joanninha?
Eu em tudo estou prompta a obedecer a meu pae; mas...
Mas o que?
Casar-me com o Joze Velhaco, isso não. Antes morrer.
Bem vê, sr. Vigario...
Vejo que Joanninha é boa filha, e que quer salvar seu pae da deshonra... Recuza casar-se, porque o casamento é impossivel. Uma santa rapariga não póde unir-se a um homem depravado: n'uma familia honesta, como a de Antonio Prudente, não póde entrar um mizeravel que todos desprezam.
O que diz?{D1. Pg. 58}
O que o coração lhe teria dito, se o desejo louco de juntar ás suas fazendas mais um pedaço de terra o não cegasse!
Nossa Senhora o abençoe pelas verdades que está dizendo!
(Com hesitação.) Prometti minha filha ao Joze Velhaco, e a palavra de Antonio Prudente é sagrada.
Deve ser sagrada quando a der a um homem de bem, e quando cumpril-a não for sacrificar sua filha.
Antonio, escute-me. Ha no Funchal um pobre pescador, com duas filhas que sustenta, e são a sua alegria, a sua força, a benção da sua caza. Esse homem saiu uma destas noites passadas, para ir pescar; e quando voltou de madrugada achou as portas abertas, e tudo deserto.
O que aconteceu?
Suas filhas tinham sido furtadas. Imagine, Antonio Prudente, a dôr d'aquelle pae!
(Como arrastado por uma força invizivel.) Ai, se a mim me roubassem a minha filha!... acabava de magoa: mas depois de matar com estas mãos quem m'a tivesse roubado.
É pae, Antonio, ainda é pae! Bem se vê.
O que fez o pescador?{D1. Pg. 59}
Lembrou-se de que se negocia na Madeira em escravatura branca; lembrou-se, foi Deos que o inspirou! de que ha na terra homens infames que enganam seus irmãos. Como o pescador sabia, que mais de uma vez os que tem ido a bordo dos navios de emigrados, despedir-se dos parentes, ficaram lá contra vontade, e foram para Demerara, occorreu-lhe que miseraveis, que praticam horrores d'estes, eram tambem capazes de usar de violencia, e de augmentarem assim o numero das suas victimas. Lembrou-se de tudo isto, e foi ter com um desses homens.
E matou-o?
Não. Disse-lhe estas palavras. «Ou minhas filhas hãode hoje mesmo voltar para casa, ou amanhã apparecerás assassinado.»
E então?
Horas depois o pobre pae apertava ao coração as duas filhas.
E quem foi que as roubou?
Dinheiro, espalhado com mãos largas pelos ricos traficantes de escravos brancos, esconde o nome desse homem, mas falla-se...
De quem?
Do Joze Velhaco.{D1. Pg. 60}
Elle!
Todos fallam. Já vê, Antonio Prudente, que não póde querer para marido de sua filha um homem perdido de reputação.
Não... sem elle se justificar.
Sei que é o desejo de fazer sua filha rica e feliz o que o allucina; mas, ainda assim, desconheço-o. N'outro tempo, a sua probidade não lhe consentia pensar mais um instante em tal casamento, depois de saber o que se diz por ahi do Joze Velhaco. Escute o seu coração, e a sua consciencia, Antonio, e verá, como eu vejo, que o casamento é impossivel.
Sr. Vigario... talvez tenha razão: mas, com perdão de v. s.ª sou pae, e um pae sabe melhor do que ninguem o que convem a sua filha. Não posso faltar á minha palavra, sem saber se o que se diz é mentira ou verdade.
Nem mais um conselho lhe dou, Antonio, de hoje em diante. Faça o que quizer. Sacrifique sua filha, e deshonre-se. (Vae para sair.)
Pae, escute o sr. Vigario.
(Commovido.) Não me faça a offensa, sr. Vigario, de me tirar a sua amizade. Era um desdoiro para a minha vida, uma dôr d'alma, e uma deshonra para estes cabellos brancos. Pelo amor de Deos, perdoe-me!{D1. Pg. 61}
Não quero senão o seu bem; e peza-me que me não escute.
Se permitte, não me dou ainda por desligado. Vou ter com o Joze Velhaco, e se não se justificar, se não provar que está innocente, ficará o dito por não dito, e não torna a entrar n'esta casa. Mas antes de o condemnar é preciso ouvil-o.
Mas tambem se devem escutar as queixas, e os prantos de uma filha, antes de a condemnar por toda a vida. Emfim, Antonio, confio tudo da sua probidade, e do muito amor que tem á nossa Joanninha. (Com brandura.) Bem sabe que a vi crescer, que lhe ensinei a ler e a escrever, que lhe dei uma educação como no Funchal não se dá ás filhas dos morgados; custava-me vel-a casada com um homem, incapaz de a fazer feliz.
Vou já ter com elle, se o sr. Vigario dá licença.
Vá depressa.
V. S.ª perdoa-me alguma má palavra?...
Não tenho que perdoar, e já esqueci tudo; excepto que Antonio Prudente é homem honrado, e hade mostrar-se bom pae.
(Beijando a mão do Vigario.) Agradecido, agradecido. (Sae.){D1. Pg. 62}
Os mesmos, menos Antonio Prudente
Joanninha, parece-me que pódes socegar. Este casamento não se faz.
Não me atrevo a ter esperança. Meu pae anda infeitiçado. E depois, nem já sei senão chorar noite e dia, chorar até morrer.
Deixa estar, Joanninha: as lagrimas dos innocentes quasi sempre a mão de um amigo as enchuga. (Brincando.) Eu sei, minha menina chorosa, que essa mão benefica não hade tardar muito aqui.
Ninguem pode consolar-me.
Ahi está Maria das Dores, que bem velha é, e que ainda assim não hade ter sempre os olhos arrazados de lagrimas, como agora.
Não, sr. Vigario, porque debaixo do chão não se chora.
Nem tambem cá por cima, quando se é feliz.
Feliz, eu?! Sem o meu filho?!
Quem lhe disse isso, Maria das Dores?
Quem? Joze Velhaco, o proprio malvado que o matou, o meu Luiz.{D1. Pg. 63}
Esse infame... Maria das Dores, tenha animo para ouvir o que vou dizer.
Tenho animo... Bem vê que resisti quando me disseram... que era morto o meu Luiz.
Ah! diga!
Joze Velhaco mentio.
(Desfallecendo.) Nossa Senhora me leve nesta hora... para acabar na alegria!
(Pulando.) Vivo!... vivo... o Luiz! Onde está!
Maria das Dores, o que é isso? A alegria custa menos a supportar do que a dôr.
Deixe-me perceber... Estas mudanças custam... o coração lucta com a duvida. Elle não morreu?
Não.
Mas está ainda longe?
Em Demerara?
Teve noticia?
Quando chega!
Talvez a esta hora já não viva!
É preciso mandal-o buscar.{D1. Pg. 64}
(Enternecido.) Soceguem. Já está em caminho.
Ha quantos dias?
Virá d'aqui a tres?
Amanhã?
Mais breve.
Hoje!?
Chegou. (As duas mulheres abraçam-se.)
Que alegria, filha!
Jesus!
Eu... morro, porque não posso...
Onde está?
O meu filho? (Luiz entra precepitadamente.)
Está aqui.
Luiz!
Cae o panno.
FIM DO 2.º ACTO{D1. Pg. 65}
A caza de Antonio Prudente, como no segundo acto. É noite; um candieiro de tres bicos alumia bem a caza
Joze Velhaco e Joaquim
É negocio concluido. (Mostrando um papel que tem na mão.) Esta obrigação que você assignou... é o principio da sua fortuna.
Deos queira! Sr. Joze, vm. não sabe como lhe heide pagar a boa vontade! Esse papel é uma obrigação que lhe faço; por ella me sujeito a servil-o, ou a quem vm. mandar, aqui ou em Demerara, até pagar a divida de quarenta patacas, que recebi...
A obrigação está em regra, e é justo. Trabalho em troca de dinheiro; assim se faz em toda a parte.
Isso é o que vm. diz, sr. Joze, mas quem sabe o que será? E a fallar a verdade, trabalhar por trabalhar, antes na terra, que eu conheço, do que em outra que nem de portuguezes é.
Pois eu falto ao que prometto, homem?
Bem sei que vm. é... um amigo como se quer. (Rindo-se.)
Ri-se, Joaquim?{D1. Pg. 66}
Estava-me lembrando do Luiz do Campanario, e dos outros que o sr. Joze foi mandando para Demerara, e que ficaram por lá. Ah! ah! ah!
(Á parte.) O maldito Luiz não ficou! (Alto.) Com esses não ajustei senão, que haviam de achar trabalho em Demerara... e não lhe tem faltado. Assegurei-lhe que lá se ganha dinheiro, o que é verdade, quando se ganha.
(Rindo muito.) Ora o sr. Joze tem graça! Mas de mim, de mim é que eu não quero que ninguem se ria. Palavras leva-as o vento.
Então o que quer, Joaquim?
O preto no branco, e nada mais. Uma obrigação, como a que lhe fiz, em que vmc. se obrigue a dar me o officio... o officio de... ah! ah! ah!
De aliciador! Diga homem, não se engasgue com palavras, que escorregam bem.
Pois como fôr da vontade de vmc. A obrigação escripta pela sua mão é que eu quero; e sem ella não vou da Madeira!
Forte parvoice! A minha palavra vale-lhe de mais, em Demerara, do que um papel escripto.
Cá a palavra do sr. Joze vale de muito; mas por isso é que eu a quero no papel... para durar mais. Sem a obrigação não embarco!{D1. Pg. 67}
Isso agora não esperava eu. Então porque não me disse logo tudo? O ajuste era outro.
Quero o papel porque, depois que esta manhã o larguei, peguei a scismar que a gente não deve dar papel em troca de palavras; que ha viver e morrer, e que o sr. Joze póde morrer...
Mas se eu morrer de que serve o papel?
Os seus amigos não hão de deixar mal a sua palavra honrada.
Mas...
Vmc. quer ou não quer? O dito, dito.
(Indo a uma mesa e escrevendo.) Pois vá lá. Escrevo a obrigação.
Assim é que é fallar.
Alto! Espere! Faço-lhe isto, que não estava nos nossos ajustes, porque sei que é meu amigo, Joaquim.
Pois não sou?
E aos amigos velhos, faz-se-lhes as vontades.
E a obrigação?...
Já vae; mas fallemos antes d'outro negocio...{D1. Pg. 68}
O que é?
Já tenho dado provas de que me fio de vm. Joaquim; e quero que se capacite ainda mais. Conto com o segredo, e com a sua amizade... sim, com a nossa amizade antiga... com o dezejo de sermos uteis um ao outro.
Então o que quer?
Você sabe que eu estou para casar com a Joanninha... Boa rapariga, e que mostra por mim sua simpathia!... Mas até agora... tem estado... tem posto duvida...não deu ainda o sim... O pae dezeja muito o casamento, e com brevidade...
Então se o pae quer, e a rapariga tem... isso que vm. diz... sapathia, que mais dezeja o sr. Joze? Case! (Com escarneo.)
A Joanninha põe suas duvidas. Parece que esteve namorada, em outro tempo de um rapaz, e fez-lhe promessa de fidelidade. Agora, apesar do coração a puxar para mim, não quer que lhe chamem inconstante.
E que remedio posso eu dar a isso?
E simples... mas só de um amigo se confia. Esta noite resolvi empregar uma violencia... apparente, ja se vê. Antonio Prudente está por tudo. Resolvi acabar com as duvidas de Joanninha. Você, Joaquim, se me quizer fazer esse favor...{D1. Pg. 69} póde ajudar-me... e eu ajuntarei, da minha algibeira, umas vinte patacas, para acudir á sua viagem... Se quizer, póde servir-me de muito.
Mas como?
Vindo esta noite comigo, quando tudo dormir nesta caza, e mais dois marinheiros, gente fiel lá do navio em que hade partir para Demerara, furtar... levar d'aqui a Joanninha.
Ora essa! Pois a gente hade tirar a filha ao sr. Antonio Prudente?
Não se lhe tira a filha, apressa-se o casamento, como elle dezeja.
E se a pequena gritar?
A janella costuma ficar cerrada de noite, e a porta do quarto de Joanninha é aquella defronte. Entra-se devagarinho; tapa-se-lhe a boca, quando estiver a dormir, e depois faz-se tudo como se quer. Ella depois não tem remedio senão casar; Antonio Prudente faz o seu gosto, e eu o meu.
Vm. lá o lê, lá o intende.
Então está prompto?
Estou, mas venha o papel.
Você faz de mim quanto quer. (Dá-lhe o papel.){D1. Pg. 70} Vá abaixo ao Calháo, e espere por mim. Os dois marinheiros lá hãode estar.
Lá vou. Para servir o sr. Joze Velhaco está um homem sempre disposto.
Bom rapaz. E caluda! As vinte patacas ficam a tinir.
O sr Joze sempre é uma grande cabeça. Até logo. (Sae.)
Sou uma grande cabeça, isso sou! Tudo vae ás mil maravilhas, e n'um pulo estou mais alto do que esses morgados rabugentos e impertigados da Madeira. Viva o sr. Joze Velhaco, que hade ser ainda deputado, commendador... barão... e quem sabe o que mais? Com esta cabeça, e com este coração, heide chegar... até onde chegam os que são do meu feitio.
Joze Velhaco e Antonio Prudente
Então meu rico Antonio Prudente o que mais soube contra mim?
Nada. Fui a caza dos dois negociantes, que me indicou, e ambos fizeram da sua pessoa muito boas ausencias. O Carlos Bad, sobretudo, que{D1. Pg. 71} passa por homem serio, disse-me que melhor do que sr. Joze Velhaco não conhecia ninguem... a não ser elle proprio. E o velho riu-se tanto com aquella cara de bom homem!...
(Á parte.) Que maroto! (Alto.) Bom homem de certo, devo-lhe bastantes obrigações. Aquellas desconfianças, que lhe metteu o padre Vigario a meu respeito, já lhe vão passando, sr. Antonio? hein?
Já. Mas o Vigario quer-lhe pouco bem, Joze.
Desgraças! Quem póde evital-as?
Vim agora por caza delle, para lhe contar o que me disse o pae das duas crianças que tinham sido roubadas, e os elogios que fizeram de vm. os dois negociantes... Quero que todos o reputem, Joze, por homem honrado antes de lhe dar a minha filha.
(Com admiração.) Então já se não faz o casamento immediatamente? Os contos do Vigario sempre pegaram!
Eu desejo que se faça; mas é melhor que você se justifique primeiro. É facil, e não leva muito tempo.
A minha melhor justificação é ser seu genro, genro do honrado Antonio Prudente.
Isso depois: por em quanto esperaremos.{D1. Pg. 72}
(Á parte.) Eu te direi logo se espero! (Alto.) O que o fez mudar, sr Antonio Prudente?
(Com embaraço.) Respeito muito a opinião do nosso Vigario; e em quanto elle não estiver convencido, como eu, da sua innocencia, é melhor... demorarmos o casamento.
Assim se deita a perder o credito de um homem. É até onde póde chegar!
A verdade anda sempre ao de cima d'agua, não lhe dê cuidado. Sabe que mais, Joze Velhaco, admirou-me a generosidade com que deu dez tostões ao pescador, a quem roubaram as filhas, e que tanto o defendeu na minha presença. O pobre homem não cabia na pelle, e sempre lhe deu um abraço... cuidei que o arrebentasse!
Se não posso ver ninguem pobre, em o podendo remediar! Eu cá sou assim! Enterneci-me; e o ardor com que elle me defendeu... fez-me ver, que nesta gente é que ainda se encontram exemplos de virtude. Olhe sr. Antonio Prudente, a virtude é o meu fraco! Santa palavra!
(Apertando-lhe a mão.) Gosto de o ouvir, Joze. Porque lhe terá o Vigario tão má vontade?
Promette não se zangar, se eu lhe disser a razão?{D1. Pg. 73}
Não me diga...
Ouça, e não torve de repente. Sua filha está namorada do Luiz do Campanario...
Já sei, e não desgostei por isso que o rapaz fosse a Demerara... a ver se ella o esquecia...
Qual! Cada vez se lembra mais. O Vigario é quem os protege.
Faz mal!... porque eu... Mas no fim de contas o que protege o Vigario?... Um homem que morreu.
Engana-se redondamente, sr. Antonio Prudente. O Luiz vive, e o Vigario sabe que elle está...
Aonde?
Na Madeira. Chegou hontem, e já aqui esteve com Joanninha.
Aqui?
Trouxe-o o Vigario. Verá que elle casa a Joanninha com o Luiz, e leva a sua por deante.
Menos isso! Antonio Prudente não se mette assim debaixo dos pes. Pois se o Luiz aqui esteve, e fallou a minha filha, o remedio é casal-a já com o sr. Joze.
Governe, sr. Antonio, governe o que é seu, e{D1. Pg. 74} não se arrependa. O Vigario é de familia de Morgados, dos fidalgos da ilha: sabe que tenho meus vintens, e não gosta de que eu hombreie com os seus... Dá licença que eu use de todos os meios para conseguir que sua filha case comigo?
Dou, permitto! (Battendo o pé no chão.) Hade fazer-se o casamento. (Depois de pensar um pouco.) Mas quero levar o negocio de vagar, e com prudencia. Amanhã, quando estiver mais socegado, fallaremos. Agora deixe-me com a Joanninha; quero desabafar. Depois pensarei com mais descanço.
Pois fique-se com Deos.—Taes coisas farei, que ámanhã acabarão as suas duvidas. Fie-se no que lhe digo. (Indo para sair.) É preciso que um homem saiba governar a sua caza, porque um homem é um homem. (Sáe.)
Antonio Prudente e Joanninha
Ninguem hade governar aqui mais do que eu! (Chamando.) Joanninha!
Meu pae!
Anda cá. Responde-me... e não mintas.
Eu nunca lhe menti, pae.
Mas escondes-me a verdade, que é o mesmo. Não queres casar com o Joze Velhaco?{D1. Pg. 75}
Já lhe disse, pae, que não.
Nem com elle, nem com outro?
Dezejo ficar na sua companhia.
(Colerico.) Mentes.
Eu? sou muito sua amiga!..
Se o fosses não me desobedecias. Sei tudo. Não te queres casar, porque te namoraste de um desgraçado sem dinheiro.—Prometteste casar com o Luiz do Campanario... e a mãe, a Maria das Dores, tem tido o cuidado de não t'o deixar esquecer. Invencioneira!
Não seja injusto! Confesso que não posso gostar senão do Luiz do Campanario. Com elle fui creada, e só com elle posso viver!..
Contra minha vontade!
O coração póde mais.
Creancices, filha! Isso hade passar!
Em eu morrendo!
É a ultima vez que to digo, Joanna. (Severo.) Has de casar com quem eu mando! E nem lagrimas tuas, nem lamentos de Maria das Dores, nem palavras do Vigario, me torcem desta resolução!{D1. Pg. 76}
(Chorando e com muita dôr.) Eu... não choro nem lhe desobedeço. Deixo-me morrer.
Historias! (Olhando para a filha com muita dôr.) As raparigas não morrem por tão pouco... não morrem... E tu... tu não me hasde morrer, filha... (Agarrando-a com muito amor.) Minha rica filha!
Meu pae! (Deitando-se-lhe nos braços, e escondendo a cara.) Se eu não posso viver sem elle...
Viste-o hoje? Sei que chegou.
Vi-o; e ouvi os seus padecimentos. Tive tanto dó delle!
Invenções... para te seduzir.
Não diga isso:..—Esteve em Demerara quazi como escravo: teve as febres, e foi levado para um hospital, onde não havia nem quem o tratasse. Pobre Luiz! Com elle fui creada, vivemos juntos... e... esta desgraça, causou-me tal dó... fez-me crescer tanto a... amizade, que já lhe tinha...
E eu a escutar-te... a chorar quasi! (Limpando os olhos.)
Não se envergonhe pae. Só os maus é que não choram.
(Repellindo-a sem violencia.) Gosto muito de{D1. Pg. 77} ti, filha; mas as lagrimas e as festas não me fazem mudar. É para teu bem! Essas calumnias que dizem do Joze Velhaco... que não é capaz...
Elle é capaz de tudo.
Joanna, que eu não torne a ouvir-te dizer mal do homem que está para ser...
A minha desgraça. Pae se soubesse...
(Com muita colera.) Joanna!
Oiça; que é verdade. Escute!
Diz... é mais uma calumnia, de que elle se defenderá.
Quando o Luiz foi para Demerara—enganado por elle, e levado pelo amor que me tinha—entregou ao Joze Velhaco vinte patacas, para Maria das Dores...
E então?
Joze Velhaco roubou o pão da mizeria.
É falso!
O Luiz e Maria das Dores não mentem.
Se fosse assim, Joze Velhaco era um infame. Mas, dize me, Joanninha, se provar que tudo são mentiras promettes casar com elle!{D1. Pg. 78}
(Com firmeza.) Prometto. Se elle provar que está innocente façam de mim o que quizerem.
Verás! Mas fica descançada. Não sou capaz de te casar com um homem deshonrado.
(Abraçando-o.) Meu querido pae!
Bem! Não precisas lembrar-me de que sou teu pae! Amanhã fica tudo destinado. Agora descançar, que são horas... O dia tem sido hoje inquieto para ambos nós. (Dando-lhe um beijo.) Adeos filha. Não queiras mal a teu pae. (Sae.)
Joanninha, depois Luiz do Campanario
Como lhe heide querer mal, se elle me estima tanto, o meu querido pae? (Caindo de joelhos deante de uma imagem da Virgem, que está pendurada na parede.) Senhora da Conceição, Protectora dos afflictos, ouvi-me. Peço descanço para a minha alma, Virgem Santissima, peço-vos, que longe de mim vá aquelle homem preverso! Soccorrei-o a elle... ao meu Luiz. (Durante esta oração Luiz entra pela janella, que estava cerrada e vem ajoelhar junto de Joanninha.)
Soccorrei-o, Senhora, e á innocente que vos pede!
(Levantando-se.) Luiz!...! Aqui?{D1. Pg. 79}
Não me querias ver? Separados ha um anno... depois de tantas saudades?
E saudades taes! O susto de te perder, o temor de meu pae, e o horror d'aquelle malvado, tudo que era contra nós, quebrava-me as forças. E as lagrimas da tua triste mãe? Tudo... tudo me amofinava nesses dias amargurados. Mas agora que estás aqui, e voltaste do desterro, agora, parece que já me sinto outra.
Mas teu pae não consente!
Por ora. Já sabe do roubo, das vinte patacas furtadas a tua mãe. Ficou em duvida... e disse que me não casava sem Joze Velhaco mostrar a sua innocencia.
Não póde mostrar!
Meu pae hade deixar-se vencer das minhas lagrimas, e dos conselhos do sr. Vigario!
Agora mesmo o larguei, e prometteu-me, o santo homem, que hoje mesmo... havia de ficar tudo decidido. O Joze Velhaco perdido de todo, e nós felizes.
Luiz, bem sabes se eu te amo, e se ha alegria e vida para mim longe de ti; mas agora, assim de noite... não gosto de te ver... nesta casa. Podia alguem descobrir-te quando entraste, póde meu pae estar acordado, e sentir-te...{D1. Pg. 80}
Tudo isso me occorreu... mas, o desejo de te ver... foi mais forte. O Vigario mandou-me chamar ha pouco, e disse-me, «Luiz, esta noite fica tudo deslindado; hoje acaba a tua desgraça... foi assim mesmo que me disse! É preciso que passes a noite nas visinhanças da casa de Joanninha.»
Porque?
Foi o que perguntei... «Depois o saberás» me respondeu elle. Obedeci. Estando perto, escondido, vi luz, olhei pela janella, e achando-te só, e ouvindo-te resar, não pude resistir, e entrei para pedir, comtigo, a Nossa Senhora que nos soccorra.
E que Deos nos ouça! Meu pae hade ceder por fim. Depois, que alegria! Quando formos ambos á festa do Monte, e todos disserem: aquella é a Joanninha, a filha de Antonio Prudente, que vai com seu marido.
Que é o mais feliz da Ilha, hão de acrescentar. Mulher como a delle não ha outra na Madeira! Bonita, séria, galante!...
Luiz.
Joanninha!
E quando será?{D1. Pg. 81}
Cedo, bem cedo! (Esta scena deve ser representada com muita rapidez.)
Os mesmos Joze, Joaquim, e dois marinheiros
(Apparecendo á janella, com uma pistola na mão.) Veremos.
Ah!
Joze! (Correndo alguns passos para elle.) Agóra pagarás tudo... malvado!...
(Apontando a pistolla para Joanninha, e em voz pouco elevada.) Nem mais um passo!... nem mais um grito. Não acordemos o sr. Antonio Prudente.
(Detendo-se.) O que fazes?
(Entrando.) Mato-a, se te moves... se dás um grito! (Aos dois marinheiros que entram cautelosamente atraz delle seguidos de Joaquim.) Rapazes, segurem-me este heroe!
Maldito!
Nada de resistencias, e de palavradas, senão temos desgosto na festa!
Jezus, acudi-me!{D1. Pg. 82}
(Aos marinheiros.) Segurem-o!... e para bordo... Que vá para Demerara, donde fugiu... o escravo!
(Rezistindo apenas.) Este homem sahio do inferno... Marinheiros!... Condoão-se de mim... e daquella desgraçada...
(Aproximando-se de Joaninha.) Joanninha, tudo isto faço pelo muito amor, que te tenho!
E consente Deos isto?
Vem commigo!
Não consintas, Joanninha!
Antes morrer.
(Colerico.) Não morrerás, e serás minha.
Só tua, Luiz!
Ajuda-me, Joaquim!
(Gritando.) Deixe-me, deixe-me.
Se gritas... se dizes uma palavra. (Aponta a pistolla a Luiz.)
Grita... brada... pede soccorro...
Soccorro!{D1. Pg. 83}
(Cego de furia.) Morre, para não gritares! (Dispara a pistolla sobre Luiz, mas no momento de partir o tiro, Joaquim desvia-lhe o braço.) Errei! (A Joaquim) Que fizeste?...
(Tirando-lhe a pistolla, e segurando-o.) Chegou tambem a tua vez, Joze! Pagarás tudo agora. (Neste momento saltam pela janella, e entram arrombando a porta alguns homens do povo, guiados pelo Vigario.)
Os mesmos, o Vigario, homens do povo, logo depois Antonio
Segura-o, Joaquim.
(Armado com a faca de um dos marinheiros.) Tem firme, esse malvado: vou-lhe arrancar o coração!
(Detendo-o.) Luiz! Luiz... diante de mim!..
É um preverso!
A justiça o castigará.
(Entrando espavorido.) Que é isto... em minha caza?
Querem-me assassinar. Acuda-me!{D1. Pg. 84}
Calla-te...
Vi entrar pela janella, na sua caza, o Luiz do Campanario. Vinha seduzir sua filha...
Seduzir minha filha?...
E para salvar a honra de Joanninha, da minha noiva... entrei atraz, com risco de vida... Quando ia para o castigar...
Quando ias para roubar a donzella a seu pai, e estavas para mandar violentamente para Demerara esse homem, pela segunda vez, appareci eu, e frustei os teus planos.
É falso, é falso!...
Escute, Antonio, e veja o marido, que ia dar a sua filha... Este homem não te roubou o dinheiro, que deixaste para tua mãe?
Roubou.
Não te convidou a ti, Joaquim, para aliciador de escravos brancos?
É assim sr. Vigario, e aqui está um papel asignado por elle... (Da-o a Antonio.)
Para servir de prova.
A obrigação que me pediste?!... Traidor!{D1. Pg. 85}
Não vinha elle aqui esta noite para furtar a filha do sr. Antonio Prudente!
Tal e qual; por signal, quiz que eu o acompanhasse.
(A um homem.) Não foi o Joze Velhaco quem roubou as tuas filhas?
Foi, sr. Vigario!
Não são testemunhas todos, de que tentou agora matar o Luiz do Campanario.
Somos.
É mentira.
Levem-o d'aqui. Amanhã será entregue á justiça, no Funchal. (Alguns homens levam Joze, que vai gritando: É mentira! é mentira!)
Senhor Vigario salvou a minha honra... salvou... Perdoas-me filha?... salvou a minha querida Joanninha. (Abraça-a.)
Pude salval-a... Mas fazel-a feliz, não depende de mim.
O sr. Vigario manda nesta caza.
Então mando que não haja ninguem triste. (Pondo a mão de Joanninha na mão de Luiz.){D1. Pg. 86}
Mas, sr. Vigario...
O Luiz, o marido que dou a tua filha, é o feitor de meu irmão, o morgado Bittencourt.
(Com fogo) Viva o nosso Vigario!
Viva!
Deos proteja o nosso Vigario.
Deus proteja a Ilha da Madeira.
Cae o panno.
Fim do 3.º acto e do drama.
Fr. Bermudo. | D. Gonçalo de Sousa. |
D. Mendo Paes. | D. Soeiro Viegas. |
O Infante D. Affonso. | João Sirita, Ermitão. |
D. Pedro Framariz. | D. Bibas, bobo. |
O Bispo D. João Peculiar. | D. Bonamiz, bobo |
D. Tello, Prior de Santa Cruz. | Um Judeu. |
D. Gonçalo Mendes. | Um Templario. |
D. Egas Moniz. | D. Gontrade. |
D. Lourenço Viegas. | D. Violante. |
D. Guilherme Ricardo. | |
Ricos homens, templarios, cavalleiros, damas, homens de armas, frecheiros e besteiros. |
Um campo junto á pousada de D. Pedro Framariz, no Burgo de Guimarães.
Entram Besteiros, e Homens d'armas de D. Pedro Framariz, trazendo um Judeu prezo com uma corda
Anda perro judeu... anda; vamos, e depressa,{D2. Pg. 2} que o teu sangue, e a tua pelle hão de tornar-se hoje em bons e finos maravedis.
Olá!—O nosso amo bem sabe os meios de lh'os fazer sahir do corpo.—Bons meios, e que nunca falham. Uma tenaz de ferro em braza, uma boa corda de esparto, e ás vezes um cajado de zambujeiro, bastam para fazer de um judeu um sacco de oiro.
E agora sobre tudo, que os maravedis são tão necessarios, o sr. D. Pedro ha de empregar os bons meios para tirar prata e oiro do corpo deste judeu. D'aqui a uma hora partimos, para andarmos por lá, Deus sabe quanto tempo.
Não nos ha de faltar nada. Nos recontros com os mouros sempre se ganha alguma coisa. Uma fossada pelo Al-Gharb ha de dar para senhores e vassallos. Até nós, pobres besteiros, havemos de apanhar algumas migalhas do que der a conquista.
E nesta correria então!... Dizem que são tão ricas essas terras d'Além do Téjo!
E que o não fossem! Para nós homens de armas de D. Pedro Framariz sempre ha que apanhar.
Hei de trazer este meu lorigão forrado de oiro.
E a alma de indulgencias.
Tambem, e porque não? Lá váe o nosso Infante para as ganhar...{D2. Pg. 3}
E tem razão.—E elle dês que a mãe lhe morreu anda triste, e a scismar sempre. A mãe, a sr.ª D. Thereza, era uma brava mulher. Vi-a muita vez, nas guerras com os leonezes, ao lado do conde Fernando Perez, caminhar para o inimigo como um homem.
(Em voz baixa.) Foi o Infante D. Affonso Henriques quem a matou.—Aquella prizão... e depois aquelle desterro...
O sr. Infante não a matou. Cá a mim parece-me que elle fez o que devia. Portugal ía-se pela agua abaixo se fica mais tempo nas mãos de uma mulher.
Palavras inuteis... e perigosas!—Vamos levando este maldicto judeu para a pousada do Burgo, e deixemos o resto que nos não importa.
Não tem pressa. Nosso amo está ainda com o Infante e outros cavalleiros a ouvir a missa no mosteiro de Mumadona.
Qual?! Está já de volta, de certo. D'aqui a pouco partimos.
(Puxando pelo judeu) Vamos, vamos. (Ao 1.º homem d'armas.) Garcia, faz andar este excommungado. Para que te servem esses braços, senão é para dar nos judeus e nos cães da moirama?
(Dando no judeu.) Tem os ossos de ferro estes judeus, não quebram nem pelo diabo!{D2. Pg. 4}
Deixae-me... deixae-me. Tende dó de mim, srs. besteiros.
Dá-nos um pouco de teu oiro, judeu.
Sou pobre... um miseravel... não tenho nada.
Vae dizer isso a D. Pedro, elle te fará mudar de opinião. Mette-te n'um forno, vivo, para vêr se de lá sáes mudado em barra de oiro.
Deixae-me... que elle mata-me; mata-me de certo.
Uh! uh! maldito judeu.
Has de ser assado vivo.
Deus de Jacob, salvae-me!
Vamos, que alli vem fr. Bermudo.
O feiticeiro... o magico.
(A fr. Bermudo.) Salvae-me... salvae-me!
Os mesmos, e Fr. Bermudo
Esperae... onde ides? Onde levaes esse miseravel judeu?{D2. Pg. 5}
Foi nosso amo, D. Pedro Framariz, que nos mandou que o levassemos...
Para o roubar, para o atormentar.—Deixae-o...
Um judeu...
Um judeu tambem é homem.—Deixae-o.
Mas D. Pedro ha de querer saber porque nós lhe não obedecemos.
Dizei-lhe que fui eu.
Mas...
(Com colera.) Já disse.
(Baixo aos outros.) O magico dá-nos máo olhado, se lhe resistirmos, e ficamos perdidos... O melhor é deixar o judeu.
Deixemol-o. (Deixam o judeu.)
Vamo-nos... depressa.
Deus tenha dó de nós. O que dirá D. Pedro Framariz?
É hoje, talvez, o fim da nossa vida. (Sáem.){D2. Pg. 6}
O judeu e Fr. Bermudo
(Cahindo de joelhos.) Quero agradecer-vos de joelhos.
Vae-te... salva-te.—Não pônhas em mim essas mãos.
Consenti que vos beije os pés, que me prostre diante de quem póde e sabe escrever o destino dos homens...
Foje... vae-te, se não queres outra vez cair nas mãos d'aquelles homens d'armas.
Sois o maior homem da terra! (Sáe.)
Fr. Bermudo (só)
(Rindo.) O maior homem!... Sou o maior homem, sou, porque padeço mais que os outros. A dôr moral é que distingue o homem da fera. (Pauza.) Lêr o futuro nos astros, lêr as paixões no coração; ter segredos que dão vida, e segredos que matam...—Que tem?! O futuro é um martyrio que me assusta; as paixões que escondo neste coração são crueis e negras. Se esta vida durasse uma eternidade, sería uma vida maldicta... E depois da vida a morte!... Morrer sem{D2. Pg. 7} ter sido amado, sem ter recebido um affago... sem ter a esperança de ouvir, mesmo quando já envolvido nas profundas trevas do sepulchro, um grito de saudade que me acorde!... De que serve a sciencia?... E o que é ella, essa sciencia que não póde vencer o destino, nem sequer descobrir as leis eternas que o regem? De que me serve o saber?... Tenho mais dores que os outros homens, e menos fé...—Mendo... O meu Mendo, o meu amigo, o meu filho,—porque lhe quero como se elle fôra meu filho,—como o hei de salvar?... E Violante, esse anjo, que eu... cujo nome me faz alegria e terror...—como os hei de separar, esses corações que o amor e a mocidade atraem um para o outro, e que o destino separa por um abismo! (Pausa—apontando para os astros.) Está escripto... está tudo escripto nos astros...—É fatal! (Crusa os braços e fica meditando.)
D. Mendo e Fr. Bermudo
(Vendo Fr. Bermudo.) Aqui, fr. Bermudo!
Esperava por ti, D. Mendo.
Por mim?... Neste sitio? Agora?
É aqui que te deves despedir da filha de D. Pedro Framariz.
De Violante... Quem te disse?
Soube que vinhas, e vim. Não foste hontem pedir-me{D2. Pg. 8} que consultasse as estrellas, a conjuncção dos astros para saber o teu futuro? Passei a noite a estudar o céo, e é o que n'elle li que eu te venho dizer agora.
Que te disseram os astros?... Hade ser minha?... Hade-me ter sempre muito amôr?... Seremos felizes?..
A tua estrella tocou o zenith, quando o Feretro se alevantou sobre o horisonte, acompanhado das tres Carpideiras; ao mesmo tempo que a irradiação de Neyman se extinguia, a de Sehedir tornou-se mais brilhante...
O que quer dizer tudo isso?
Não o queiras saber; deixa os astros guardarem os seus segredos tenebrosos. Mas foge destes logares; vae buscar a gloria nos campos da batalha... foge, foge do teu negro destino... se ao homem é possivel fugir ao destino.
Falla. Diz-me a verdade. Tenho animo para tudo. O que quer dizer essa disposição dos astros?
Quer dizer que a vida ha de ser uma vida de padecimento; que a morte ha de separar-te da que amas; que depois terás a gloria...
Calla-te...—Sem ella... que m'importa o resto?
Abumachar Giafar não se enganou nunca ao lêr no livro do céo... e eu leio pelo seu livro.{D2. Pg. 9}
Não póde ser... não. Se Violante morrer, morrerei com ella.
A tua estrella não se apagou.—Serás grande e forte.
O destino não se póde oppôr a que eu busque a morte no meio das fallanges serracenas.
Tudo póde o destino!
Salva-me... Calla-te... Muda isso tudo...
O que os astros escrevem no seu mudo caminhar pelo céo, não o podem os homens apagar.
Fr. Bermudo, algum demonio falla pela tua bocca.
O teu sangue de pagem está ainda muito ardente.—Mendo, sou teu amigo, sou, e deveras. Talvez o não devesse ser... mas sou-o... Mendo—Entre ti e Violante ha um abysmo.
Hei de transpôl-o.
Não, porque é vasto, immenso; porque no fundo ferve e ruge um pélago de sangue.
Enganou-te a sciencia... Não é, não póde ser verdade o que dizes.
Nem a mão de Deus, póde apagar o passado.{D2. Pg. 10}
Padre, conheces um tremendo segredo... É meu esse segredo; quero sabêl-o.
Sei... coisas que não posso dizer... tenho medo de as pensar... que me accusam, que me condemnam.
Mas...—Fr. Bermudo quero o meu segredo.
Deixa,... esquece esse amor. Não queiras, saber um segredo, que te manchará o viço da alma; que te fará envelhecer o coração, caírem mortas a esperança e a fé, mal elle tocar o teu pensamento, que desconhece ainda até onde póde chegar a perfidia dos homens.
Esquecer este amor?—Este amor é...—Não t'o posso dizer, não me intenderias, padre.
Quem sabe!... Os mysterios do coração são de Deus?!... Póde ser que vão com o corpo á cova, para lá ficarem fechados; por que Deus na sua infinita misericordia talvez os queira extinguir, com tudo quanto ha de impuro no homem.
Ai! que dôr, que dôr esta minha!... Sou o maior desventurado da terra!
Quem póde dizer que o é?—Tu, Mendo, na tua vida tão curta, já escutaste o palpitar de um coração que batia por ti.—Tens uma esperança... Amanhã serás cavalleiro, depois serás senhor de honras e castellos, depois terás um nome, uma gloria. Tens um futuro, Mendo... e n'esse futuro?..{D2. Pg. 11} Deus ha de compadecer-se de ti que és bom e puro.
(Cobrindo o rosto.) Sem Violante!... Jesus, meu Deus!
Ha homens a quem a fatalidade acompanha desde o berço, e em cuja alma sempre em trevas, não caíu uma esperança... nem mesmo já nasce um desejo.
Fr. Bermudo, não tens nem piedade, nem comiseração n'essa tua alma... Nunca te fiz mal, para que assim me lances na desesperação.
Querias saber o futuro, li nos astros, e disse-t'o.
Não te creio...—Mentem os astros...—Violante!... não a perderei, não... nem este amor tambem, que é do céo; que nasceu entre os anjos!... Ella não póde tardar.—Deixa-me... Quero ter esperança; estar alegre.—Vae-te. Vae-te, que te não veja ella, feiticeiro agoirento e máo.
Deus tenha dó de nós... de todos nós! (Sáe.)
D. Mendo e depois D. Violante
Virgem Maria, tirae-me d'alma estes dolorosos pensamentos, ponde-me o sorrizo na bocca e a{D2. Pg. 12} esperança no coração, para que um dos vossos anjos não soffra.
(Entrando agitada.) Mendo, que tendes? O que é isso que vos afflige. D. Mendo?
Minha sr.ª D. Violante!... Não quizestes deixar-me partir sem vir lançar-me a força no coração.
Estaes agitado, sobre-saltado! Que vos dizia aquelle frade, Fr. Bermudo?
Nada... não me dizia nada. Viestes, D. Violante, e na presença de um anjo as palavras de um louco devem esquecer-se. Ai! Violante, quanto vos agradeço o que fizestes por mim! Se partisse para a guerra, sem vos ter fallado do meu amor, e sem ter ouvido dessa bocca uma palavra de esperança, parece-me que me deixava morrer por lá. Este amor é a minha vida!
(Com embaraço.) Saí da pousada, saí... nem eu sei... que importa? (Com ternura.) Procurava o perfume das flôres, e vim para este lado... parecia-me que tinha nascido aqui uma flôr, que eu só devia colhêr...
A flôr da esperança?
(Cobrindo a cára.) A do amor... Enganei-me, meu pagem?..
(Seria.) Vinha para aqui, e vi Fr. Bermudo fallar comvosco... que vos dizia elle?
Loucuras, sonhos de uma cabeça cheia de illusões!
Leu nos astros o futuro dos nossos amores? Que lhe disseram os astros?
O que nos importa a nós isso tudo? (Levando-a para um assento de pedra) Vinde assentar-vos aqui; e eu vou pôr-me de joelhos, para vos adorar como a um anjo, como a uma santa que sois... Amo... amo-te... ía dizer uma blasfemia, Violante, ía fallar-te como só a Deus se deve fallar; mas é porque no mundo não ha com que se compare este amor!
(Brincando, mas com muita ternura.) Mas se esse amor mudar?... O coração dos pagens é como as borboletas, foge sempre de flôr em flôr.
Mas este meu!... Que thesouro possue elle agora! Vós bem sabeis que este meu amor não mudará... não póde mudar.—E depois tudo em roda de nós está alegre, tudo parece fallar-nos de felicidade.
Amanhã, d'aqui a horas, já não estaremos juntos. E os perigos da guerra...
Vou deixar-vos, mas para voltar cavalleiro,{D2. Pg. 14} para ter uma espada, para ter um nome, que seja mais digno de vós, do que o do obscuro pagem.
Mendo!
Ó Violante, D. Violante não esqueçaes nunca esta hora de immensa felicidade!
Nunca.
Sereis minha? sempre minha?
Serei.
Amaes-me?
Mais que tudo!
(Ficando triste.) Este amor será para nós uma benção do céo... será.—É de certo.
Estaes outra vez triste. Lembram-vos as predicções de Fr. Bermudo? Que disse elle?
Que importa o que elle disse? O nosso amor vem de Deus, só Deus o póde destruir.
Dizei a verdade Mendo... Não tenho medo, como vêdes... Dizei; que o coração já advinhou tudo.
Para que quereis?...
Dizei.{D2. Pg. 15}
Disse... que não seriamos nunca um do outro... Que o destino nos separava para sempre.
(Deixando-se cahir de joelhos ao lado de D. Mendo.) Virgem Nossa Senhora, vallei-nos!
Separar-nos!... Agora, que a tristeza nos cobriu de trevas, e que começavamos a sentir os amargores da saudade... Separarmo-nos agora!
Deixar-te...
Não chores... Minha Violante!
Esta guerra!... Esta auzencia!...
O amor... O amor unirá as nossas almas, quando eu estiver longe, lá por esses certões do Al-Gharb.
Cada noite procurarei na luz das estrellas um desses teus olhares de amor, que são mais suaves para mim do que os clarões mais puros de um céo sereno e bello.
Cada tarde escutarei no silencio dos bosques o brando gorgear das aves, para vêr se na voz de alguma dellas distingo um dos teus castos suspiros.
Ai! Se te eu perdesse...
Quando voltar, seremos um do outro, para sempre!{D2. Pg. 16}
Sinto gente! Adeus
Violante!... (Cáem nos braços um do outro.)
Sou tua!... Adeus.
Adeus. (D. Violante sáe.)
D. Mendo, D. Bibas e Bonamiz.
(Cantando o que se segue.)
Porque choras
Pagem terno?
Teu inferno
Não melhoras.
Trá—lira.
(Cantando e rindo.) Ah! Ah! Ah!
Tu aqui?... aqui D. Bibas... Quem te trouxe aqui, bôbo?
(Apontando para Bonamiz.) Foi elle.
(A Bonamiz.) Tu?
(Apontando para D. Bibas.) Foi elle.
(Cantando.) Uma bruxa nos guiou.
(Cantando.) Um diabo nos mandou.{D2. Pg. 17}
(Cantando.)
Segredos do coração
Mui grandes segredos são.
Am!
Am!
Am!
Que viste, D. Bibas?—Que ouviste Bonamiz?
Vi-te dar um abraço... e tive inveja.
Ouvi dizer á mais linda dama das Hespanhas, que te amava... e desejei estar-te na pelle.
Nada mais...
Ah!—Ouvi dizer, que os astros te tinham declarado a guerra; que a morte...—Que importa isso, a quem ama?
Que importa?...
O amor é sempre assim. Nunca viste as crianças brigarem por uma borboleta, que morre e se desfaz apenas o vencedor lhe toca?
Mas...
Pois as felicidades são como as borboletas; e os homens como as crianças.—Mas de todas as felicidades, as do amor são as que menos duram,{D2. Pg. 18} e de todos os homens os mais ridiculos... são os amantes.
Deixa agora essas chocarrices.—Escutae, ambos.—Se disserdes a alguem o que acabaes de vêr e de ouvir, arrancar-vos-hei olhos e lingoa... a ambos.
Com a espada de cavalleiro, que ainda has-de ganhar?
Juro...
Não jures, que não é precizo para nada. (Serio.) Pagem namorado, somos vossos amigos, e não podemos deixar, com a nossa magnanimidade real, de vos dizer um segredo... que segredo!
O que é?
Pois deveras quereis saber.
(Cantando.)
Não has-de cazar
Não cazarás, não.
Has-de Dom Bulrão,
Solteiro ficar.
Maldicto!
(Cantando.) De profundis clamavi ad te...
Bobo, bobo!{D2. Pg. 19}
Assim cantam os padres, quando morre alguma cousa, que para nada presta.—Não te encolerizes; cantamos sobre as tuas defuntas esperanças. (Cantando.) De profundis clamavi...
(Ameaçando-os.) Excomungados bobos!..
(Rindo.) Ahi vem nosso tio, o infante.
(Fugindo.) Adeus! adeus!
Tudo para mim é um agouro!... agouro máo! As palavras da meditação, as gargalhadas do escarneo... tudo! Que segredo tenebroso será este, que me envolve e me aterra? Minha mãe tambem sabe este segredo; é essa a causa d'aquella tristeza, d'aquella dôr sem consolação, d'aquelle lucto em que sempre vive. Tenho ouvido por vezes fallar em meu pae morto... nas trevas de uma noite horrenda; n'uma vingança infame que veio um dia manchar de sangue e de vergonha a nossa casa. Mas que historia pavoroza é esta de que eu ainda não pude penetrar o mysterio? Quem foi o assassino de meu pae? Qual é a família contra a qual a honra me ordena de exercer uma implacavel vingança? Não sei, nada sei, porque minha mãe só quando eu fôr cavalleiro me julga digno de saber este funebre segredo. Fr. Bermudo, o frade solitario, o astrologo que vive na isolação, tambem conhece os segredos{D2. Pg. 20} da minha familia, que eu ignoro ainda, e não m'os quer dizer.
O mesmo, o Infante, D. Gontrade, D. João Peculiar, D. Tello, D. Gonçalo Mendes, D. Egas Moniz, D. Lourenço Viegas, D. Guilherme Ricardo, D. Gonçalo de Sousa, Cavalleiros, Ricos Homens, Homens d'Armas, Frecheiros, Besteiros etc. depois D. Pedro Framariz.
(A D. Mendo.) Tu aqui, Mendo?
Esperava por vós, meu sr. Infante...
Não vieste ouvir missa comnosco ao mosteiro de Mumadona? (Mostrando D. Gontrade.) Tua mãe foi tambem... para te vêr.
E para pedir a Deus pela boa sorte das armas do reino de Portugal.
Que vosso marido D. Payo Ramires ajudou a criar, e fortaleceu com a sua espada gloriosa.
Pois o filho, o nosso pagem D. Mendo estava agora a afiar a sua futura espada de cavalleiro.
E a fazer brilhantes projectos sobre a maneira de usar della.
Callai-vos ahi, bobos.{D2. Pg. 21}
(Ao Infante.) Queremos e podemos fallar aqui, não é assim, tio?
(Aos pagens.) Fazei callar esses bobos. (Os pagens levam os bobos.)
Meu filho, não foste despedir-te de mim, vim eu.
Não julguei que partiriamos tão depressa... (Abraçando-a.) Minha mãe, minha querida mãe perdoae.
De certo te perdoará... D. Gontrade ha de perdoar ao valente pagem, que vae ganhar nas batalhas a sua espada de cavalleiro, e ajudar-nos a accrescentar á terra, que seu pae defendeu e fez independente, novas provincias, com as quaes o nome de Portugal se tornará temido em toda a Hespanha.
Meu filho! (Ficam abraçados.)
(Aos cavalleiros.) Só nos falta D. Pedro Framariz, para termos em roda de nós todos os bons cavalleiros, que estão em Guimarães. Esperaremos por elle aqui; depois partiremos para Coimbra onde está o restante de nossos ricos homens... Estas lides, que vamos lidar, senhores, hão de ser rijas; carecemos para ellas de{D2. Pg. 22} toda a nossa força. É esta uma correria, que ha de ficar de memoria aos moiros.
Nossa Senhora que sempre desde pequeno vos protegeu, e que vos prometteu tantas victorias, não vos ha de desamparar nunca, meu sr. Infante.
Assim seja, meu leal Egas Moniz. Companheiro das victorias ganhas por o conde D. Henrique, ensinar-me-has a ganhar batalhas como meu pae as ganhava.
O ceu proteje as armas dos portuguezes.
Conservae-nos pois essa protecção com as vossas orações, sr. D. João Peculiar; que nós, Ricos-homens e cavalleiros, aproveitar-nos-hemos d'ella para derribar com as nossas espadas o poder dos infieis—A vossa força, srs. bispos e prelados, está toda no céu; a nossa está na terra, appoia-se na fé, e nas armas.
Sois avisado, meu lidador. (Aos prelados.) Vós, srs. oraé por nós. D. Tello, dizei aos vossos monges de Santa Cruz que façam noite e dia preces, para que o Senhor nos tenha da sua mão. (Aos cavalleiros.) E vós, cavalleiros, desenrollae os vossos balsões, reuni nas vossas hostes todos os homens que tendes nas Honras, Prestamos e Senhorios que ganhastes; cingi as vossas espadas mais duras, tende confiança na cruz que é a nossa divisa, e atravessaremos, então, essas terras de Alem do Téjo, e lançaremos sobre ellas o nosso dominio.{D2. Pg. 23}
Aos infieis! aos infieis!
(Pegando na mão do Infante e beijando-a.) Meu senhor meu amo, deixae-me beijar-vos as mãos, deixai o vosso aio Egas admirar-vos... Sois um grande principe... Haveis de ser um grande rei!
Viva D. Affonso! Viva o nosso príncipe!
Viva o nosso rei!
A minha espada, e a de todos os templarios é vossa. Infante de Portugal, a guerra contra os infieis, aqui na nossa terra, é tão santa aos olhos de Deus como a feita n'essas longes terras da Palestina.
A minha espada é tua, Infante de Portugal.
E a nossa.
(Alevantando os braços ao céu.) Senhor, a nossa fé é immensa! Senhor, não enganeis a nossa confiança!
(Caíndo aos pés do Infante.) Dae-me uma espada, sr. Infante... Quero combatter comvosco... Quero morrer, ou ser digno da minha patria! Digno do nome que meu pae me legou!
Ganha a espada no campo da lide, que a has de amar ainda mais.
(D. Pedro Framariz entra com os seus acostados, e pára ao fundo.){D2. Pg. 24}
D. Pedro Framariz!
(Pondo as mãos sobre a cabeça de seu filho.) Ganha a tua espada, e então te confiarei o segredo da nossa familia, é uma terrível vingança.
Perdoae, sr.ª, que Deus tambem perdoa!
FIM DO 1.º ACTO{D2. Pg. 25}
O infante, em pé encostado á espada, D. Egas Moniz, o Lidador, D. Mendo, D. João Peculiar e cavalleiros D. Gonçalo de Sousa, D. Tello
É tentar a Deus, só por milagre poderiamos vencer tão grande multidão de inimigos. Ismael tem em roda de si cinco wallis, e um poderoso exercito.
As hostes de cinco wallis! Mais de cem mouros para cada um de nós. Eu tenho feito muitas correrias, tallado por muitas vezes os campos dos infieis; mas esta batalha que se prepara, tenho-a por uma temeridade, por uma loucura. Se perdermos a batalha, e com ella o nosso infante de Portugal, quem ha de defender a nossa independencia?
Os campos estão cobertos de soldados sarracenos, é um mar de lanças que nos hade quebrar nas suas ondas.
Morremos pela cruz.
Sr. infante nasci no povo e padeci; fui homem d'armas e combatti, vivi na solidão, orando a Deus, e mais de cem vezes lutei com as fera. O Senhor fez por mim grandes milagres, e a minha{D2. Pg. 26} fé é immensa como o deserto:—morreria feliz se morresse por ella!—Porém agora o combatter seria matar este reino, n'uma só lide, o que o conde D. Henrique ganhou em tantas, e tão rijas pelejas.
João Sirita, o escolhido do céu, tem razão; combattemos pela cruz, para lhe exaltar a gloria, e não para deixar a victoria aos seus inimigos. (Com solemnidade.) Eu D. João Peculiar, humilde servo de Deus, e bispo por sua Divina Graça, em nome da religião te requeiro que não combattas em lide tão desigual, porque n'ella nos perderias a todos.
Tratae tregoas com Ismael...
Tregoas com Ismael... Seria accrescentar ao perigo a cobardia; o rei mouro não guardaria a sua fé.
Não, não peleijemos.
Salvae a cruz.
Salvae a cruz sr. infante.
Agradeço-vos, sr. o vosso amor por mim, e o desejo que tendes de que estes condados se conservem livres e gloriosos.—Estamos cercados de perigos, e só um conselho avisado nos póde salvar. Deixae-me meditar, e resolver o que devemos fazer n'esta conjunctura difficil e grave. Ide-vos: e que Deus vos tenha em sua santa guarda.
(Saem todos excepto o lidador, D. Egas Moniz, D. Tello e D. Mendo.){D2. Pg. 27}
(O infante, D. Tello, Egas Moniz, o Lidador, D. Mendo).
Que quereis fazer Sr.? É, como dizeis, grave e difficil a situação em que nos achamos. Eu fio tudo da vossa prudencia, que é muito já em tão verdes annos; do vosso animo; e do amôr que tendes a Portugal. Deus vos inspirará o melhor conselho.
Que resolveis, sr. infante?
Combatter e vencer.
O numero dos inimigos é sem conto.—Vencêr é impossivel.
Morreremos então, pela fé, pela religião de Christo, e pela patria. Mas não morreremos, que m'o advinha o coração. Deus tem protegido até hoje este pequeno canto das Hespanhas que de meu pae herdei. Quando todos os reinos das hespanhas veneravam como sr. Affonso VII, combatiamos nós entre Galliza contra o poderoso imperador, e ganhavamos em Cerneja uma bella victoria. Se hoje a nossa independencia se acha compromettida, pelo tractado que assignámos em Tuy: se estamos quasi como vassallos de Affonso VII, esse estado acabará logo que ganharmos uma batalha sobre os sarracenos. Chegou o momento de ganharmos essa batalha. Ámanhã; pôr-nos-hemos independentes do imperador, e talvez accrescentaremos{D2. Pg. 28} mais uma provincia a Portugal.
Cinco chefes inimigos...
Tantos quantas foram as chagas de Christo Senhor Nosso. N'esses blasphemadores vingaremos a fé.
Apressemos a hora do combate. Lidemos rijamente, que havemos de vencer.
Vae, meu lidador: manda reunir o exercito; que quero fallar a todos, enchel-os de fé, accender-lhes nos corações uma sancta coragem. (O Lidador sáe.) (A D. Mendo.) Meu pagem, dá-me o escudo e a lança: (D. Mendo dá-lh'os.) Manda-me ajaezar o meu cavallo de batalha. (D. Mendo sáe.) Deus seja comigo nesta hora, e me falle ao pensamento.
N'esta sangrenta batalha, achar-me-hei ao vosso lado, como sempre, meu principe, para receber por vós os golpes do inimigo.
Meu Egas... meu amigo... Não tenho ninguem com quem possa desabaffar os amargores d'esta existencia senão tu.
Tendes-nos a todos... Uma família immensa que vos ama.
(Com exaltação.) Salvemol'a. Salvemos essa família com a nossa espada, e a nossa fé.{D2. Pg. 29}
(Entrando.) Está tudo prompto.—Esperam o sr. infante todos os cavalleiros reunidos...
Ámanhã estarás entre elles; terás uma espada ganha por ti, Mendo.—Vamos, senhores. (Sáe com Egas Moniz, e D. Tello.)
D. Mendo só
Serei cavalleiro!... terei uma espada, e com ella a minha Violante... a gloria!... um nome egual ao de meu pae!—Ser admirado por ella; ter um nome entre os nomes illustres... Combater por D. Affonso, pelo meu infante... que gloria, que felicidade! Ai! Violante, Violante!—(Triste.) Violante... longe de ti! Violante não esqueças o amor, que é a vida d'este coração. Quando penso na ventura de viver com ella, de lhe chamar esposa, sinto subitamente o terror esfriar-me todo. Aquellas palavras sinistras do Astrologo, de fr. Bermudo, e aquella vingança de que minha mãe me fallou levantam-se diante de mim como espectros medonhos, que me querem roubar a minha Violante! Qu'importam as palavras desvairadas de um bobo... os vaticinios dos astros? Que importa isso tudo? Deus não póde querer a desgraça de quem nunca commetteu um grande crime, de quem nunca o offendeu! (Pausa.) Ai! perdel-a!... (Fica pensando.) Morrer!... antes morrer!{D2. Pg. 30}
D. Mendo, e fr. Bermudo
Ainda não. É ainda cedo para morreres.
Não quero que morras, não quero que percas o animo, por isso vim.
Que pódes tu sobre a morte? Como pódes tu impedir que eu a vá buscar nas lanças dos inimigos? Se eu accreditasse nas tuas prophecias sinistras deixava-me matar na batalha de ámanhã.
Não irás buscar a morte porque amas a vida.
Amo sim, porque amo Violante.
Não amas Violante só.
Pois...
Amas a gloria.
Para lh'a dar a ella.
E para ti, tambem queres a gloria, e tens razão Mendo. (Compaixão.) Para que o amor fosse a tua unica paixão, o teu unico pensamento, a vida, o alento da tua alma; para que o amasses e vivesses só por elle, era preciso que o teu coração{D2. Pg. 31} houvesse padecido desde o berço dôr e tormentos, tivesse sempre ficado nas trevas e na solidão e que, quando tu o sentisses já quasi a morrer. Deus te mostrasse um anjo, uma luz, uma esperança.—Para comprehender a luz é preciso ter estado na escuridão; para apreciar a felicidade é preciso ter padecido. Os anjos não podem intender as alegrias do céu, porque nunca supportaram os tormentos do inferno...—(Pausa.) Os corações novos, que nunca foram provados pelo martyrio não podem amar como... como esses que se escondem n'um claustro, ou n'um sepulchro, para que ninguem os veja, para que ninguem saiba delles.
Que querem dizer essas palavras?
Querem dizer que tenho penado mais, muito mais do que tu, e que não quero, nem posso ainda morrer.
A sciencia prende-te á vida.
A sciencia!... Antes de ser monge, fui homem: antes de dar todas as horas a um estudo inutil, tive outros desejos e outras esperanças... A flôr morreu em botão... acabou tudo, antes de eu saber se a felicidade é mais do que uma palavra de escarneo, a alegria mais do que uma illusão miseravel... E quero a vida, mesmo assim.
Queres a vida?
Quero-a Mendo, esta alma é um abysmo, tão{D2. Pg. 32} tenebroso, que nem eu me atrevo a olhar para elle... tenho medo.
Tens sofrido muito? Tens padecido?
Escuta e verás. Tinha um unico irmão, que amava muito; ficámos orphãos ambos ainda infantes. Eu nunca tinha tido outro sentimento no coração, senão essa amizade profunda, extrema que lhe consagrava a elle; tinha-lhe salvo a vida nas batalhas á custa do meu sangue... Tudo que via de bello no mundo desejáva-o para lh'o dar. Se havia a affrontar um perigo ia eu por elle, se havia gloria a ganhar, deixava-o ir, e ficava eu. A minha vida era d'elle só.—Um dia, voltava de uma correria contra os mouros, não achei senão o seu cadaver! Meu irmão fôra assassinado.
Vingaste a sua morte?
Procurei o assassino, para vingar a morte de meu irmão; tinha ido para essas longes terras da Palestina. Fui tambem. Busquei-o por toda a parte; atravessei o deserto soffocado pelos ardores do sol, devorado pela sede, consummido pela fome. O meu cavallo morreu, e prosegui na minha peregrinação a pé encostado ao bordão de peregrino. Padeci martyrios crueis, mas não encontrei nunca esse homem que buscava. Disseram-me que tinha morrido... Voltei para a patria.
E então?
Não tinha nada que me prendesse á vida, não{D2. Pg. 33} tinha nenhuma esperança, nenhuma consolação. Fiz-me monge, e dei-me ao estudo, para vêr se a cabeça matava as saudades do coração.
E conseguiste?
Esse homem não tinha morrido, voltou.
Matastel-o?
Não.
Perdoaste?
Também não (Pausa.) O amor matou-me o odio. Fui fraco, covarde. Tive medo da minha vingança; trahí meu irmão, deixei passar junto de mim o seu assassino, e não tive força para levantar sobre elle o meu braço vingador.
Porque? O que te deteve o braço?
Amei a filha desse homem...
Tu?
Eu?!... Não.—Sou monge, não posso ter amor. Um voto matou-me o coração.
Desgraçado!...
Que importa o que passou... o que morreu! Todos julgaram que eu havia morrido... E ha dez annos que enterrado n'um mosteiro estudo a alchimia; tenho descoberto segredos, que poderiam{D2. Pg. 34} fazer os homens felizes, segredos que poderiam talvez tornar o mundo todo um paraizo. A natureza é omnipotente em crear, omnipotente em destruir: ao lado de cada força que géra ha uma força que mata... São tudo combates. O homem, grão de pó no universo, segue a lei geral. A vida é um combate entre o sêr, e o não sêr. O pensamento é uma lucta entre o bem e o mal. (Pausa.) Aqui tens, Mendo, uma essencia subtil. Esta essencia é a vida para ti se fores ferido na lide.
(Repellindo o frasco.) Padre, tu fizeste-me perder o animo: mataste-me as esperanças. Tenho agora medo de tudo, menos da morte: tudo para mim é fatal. Essa peleja perder-se-ha. A vida servir-me-ha só para ser escravo, e penar. (Ouvem-se gritos do exercito ao longe.)
Ouves?... Esses homens, ha pouco tão sem animo, tão atemorisados, estão agora incendiados pelo fogo do enthusiasmo... Oh! o enthusiasmo é um poder sublime! Os seus effeitos são similhantes aos que a força omnipotente de Deus produziria se baixasse á alma do homem... Uma palavra de D. Affonso bastou para pôr em duvida a victoria... talvez para a assegurar.
Pois julgas...
Pela fé, e pelo enthusiasmo o homem multiplica-se, torna-se grande, e vence... Desgraçado de mim, que já não sinto esse divino fogo animar-me o coração. (Dando o frasco a D. Mendo.) Mendo, toma essa essencia, é a vida..—Ámanhã,{D2. Pg. 35} no meio dos gritos da victoria, dar-te-hão uma espada de cavalleiro, e saudar-te-hão entre os heroes. Vive para a gloria. Vive para Portugal. (Em voz baixa.) Vive para vingar teu pae, se tens n'alma força para tanto.
Acceito.
Os mesmos, D. Bibas e Bonamiz
Quero a vida.
Não a quero.
Pela morte.
Só espero.
Sem a minha doce amante,
Viver não quero um instante.
Mas a gloria?
E os amores?
Mas os cardos?
Mas as flores?
(Colerico.) Outra vez a escutar os meus segredos?
Vingativos frades;{D2. Pg. 36}
E pagens contrictos,
Monges aguerridos,
Amantes afflictos
Só nos fazem rir.
Ai! fazem-nos rir...
(Colerico.) Que ouvistes?
Coisas muito para rir!—Dizem que ha grandes sabedores, homens que valem mais do que os outros, que são mais avisados. (Dando uma gargalhada.) Loucura!... Os homens são todos bobos: bobos que fazem rir, bobos que fazem chorar, bobos que amam, bobos que odeiam, bobos que leem até dos astros, bobos que não sabem ler nem mesmo um pergaminho... mas todos bobos, todos jograes e chocarreiros.
Tens razão D. Bibas.
Vós que sois admirado pelo muito que sabeis, fallaes de vinganças como o mais estupido homem d'armas... Matar... matar um homem!... O que importa isso? Pois elle não ha de morrer, sem que o matem?—Matal-o é affastal-o de todos os tormentos deste mundo, é dar-lhe o descanço eterno... Estou hoje um bobo serio, não é assim? Um bobo serio é como um vestido de dó num casamento, excita a compaixão e o desprezo.{D2. Pg. 37}
Mestre, estás hoje insipido.
Que queres? Deante destes dois mochos a piarem sons de agouro, até o genio de um jogral fica vencido.
Não digaes nada do que ouvistes, bobos.
Tambem tu, fr. feiticeiro, julgas que os bobos são como o resto dos homens? Ficae descançados; nós queremos saber para rir, e não para ir contar aos outros. (Dando uma gargalhada.) Vingativos frades.
E pagens contrictos...
Calae-vos ahi, bobos do inferno. (A fr. Bermudo.) Acceito, fr. Bermudo. Não quero a morte ainda.
Vive...
Cumprir-se-ha minha sina?
Cumprir-se-ha. (O rumor do exercito aproxima-se)
Ahi vem o nosso infante, o nosso tio infante.
Adeus. D. Mendo—Quando me quizeres, estarei ao pé de ti. (Sáe.)
(A noite tem-se cerrado pouco a pouco.){D2. Pg. 38}
O Infante, Egas Moniz, o Lidador, D. Mendo, e Cavalleiros
Viva o nosso infante! viva!
Viva El-Rei!
Havemos de vencer; protege-nos o braço do Senhor.
Viva D. Affonso!
Ide purificar-vos pela oração para que Deus proteja as nossas armas.
(Saem todos gritando—Viva D. Affonso, fica só o infante e D. Mendo.)
O Infante e D. Mendo
Mendo, amanhã é o mais bello dia da tua vida... Sentirás pela primeira vez o furor dos combates correr-te nas veias. No meio do turbilhão dos inimigos sentirás essa força estranha, superior e independente da vontade, que dirige o braço dos que pelejam pela sua fé, e pela sua patria; essa força que faz os heroes e os martyres; que é a inspiração dos homens de guerra. Não estejas assim triste agora; que depois da peleja terás de chorar os nossos que morrerem... e então... Que importa? Resta-me o amor. Tu{D2. Pg. 39} és moço, nobre; serás em pouco um dos melhores lidadores de Portugal. (Sentando-se.) Ajuda-me a tirar este capêllo. És feliz, Mendo; sobre ti não pezam nem remorsos do passado, nem terror do futuro...
Sr. infante!
Meu amigo!... Diz-me o que desejas; quero fazer-te feliz, a ti.
(Com excitação.) Meu senhor!
Falla-me com sinceridade.
Amo.
Amas D. Violante, já o sabia. Amas a filha de D. Pedro Framariz, e és amado por ella. Sereis unidos.
Unidos... Eu, e Violante...
Sou eu que t'o prometto.
Meu Deus, meu Deus! que feliz é o meu destino!
Vae agradecel-o a Deus... vae pedir-lhe por nós todos. Anda Mendo, vae pedir ao Senhor, que tenha misericordia dos que desejam glorificar seu santo nome.
Vou...
Deixa-me só. (Mendo sáe.){D2. Pg. 40}
O Infante. (Só.)
(Depois de uma pauza em que escuta os gritos do exercito ao longe.) Aníma-os a todos a esperança da victoria. Esqueceram tudo, para se lembrarem só do triumpho. Uns combaterão por que têem fé, e querem, combatendo, ganhar o ceu; outros porque têem ambição, e querem accrescentar as suas terras e augmentar o seu poder. Agora é tudo enthusiasmo, tudo esperança ahi... depois, mais tarde, quando cada um desses guerreiros estiver a sós com a sua alma, virá a meditação; depois as recordações, e as saudades; depois a oração fervorosa... e depois... depois talvez o medo da morte... Morrer pela fé é ganhar a corôa celeste dos martyres; e todos os meus companheiros d'armas creem como eu na misericordia de Jesus Christo! (Cravando no chão a espada e pondo-se de joelhos.) Cruz de redempção, sobre que primeiro se escreveu a palavra sacrosanta de perdão para os homens, symbolo de eterna victoria, ajudae-nos... Que vos cerque uma luz de gloria: que se passe um milagre diante de mim, e a minha confiança será infinita! Gedeão era humilde e fraco como eu, os seus eram poucos contra muitos, como são agora esses meus, e o altar de Baal foi derrubado, e em seu logar se levantou o templo de Jéhovah. É por que a sua fé era viva, é por que a sua offerta tinha sido consumida pelo fogo do ceu no altar do sacrifício, é por que a mão{D2. Pg. 41} de Deus o protegia, é por que na sua alma havia uma inspiração sagrada... Inspirae-me, meu Deus: dae-me a victoria Senhor... e o vosso nome será adorado por toda a parte onde chegar o meu poder. Onde eu poder fazer ouvir a vossa palavra divina, grandes e pequenos, nobres e humildes a escutarão com amor e contricção. Dae-me a victoria, meu Deus!
O Infante e Fr. Bermudo
(Á entrada do Real.) A victoria será tua.
(Levantando-se.) Quem és? Que queres aqui? Foi Deus que te mandou?
A sua benção caiu sobre ti, e os teus.
A victoria!... Será nossa a victoria?
(Abrindo as cortinas do fundo do Real, deixando vêr o campo, que se estende por uma encosta, e em que brilham algumas fogueiras; apontando para o Oriente.) Ao romper d'alva verás no Oriente o braço do Senhor estender-se sobre o teu exercito.
A victoria, a victoria! Uma palavra tua, meu Deus!... (Abraçando de joelhos a cruz da espada.) Gloria ao teu nome Senhor!
FIM DO 2.º ACTO{D2. Pg. 42}
Uma salla do castello de Guimarães, portas lateraes e ao fundo. É noite, brandões seguros por braços de ferro lançam uma luz brilhante. Ouve-se musica, ha differentes bailados, durante a primeira scena.
D. Gonçalo de Sousa, D. Lourenço Viegas, D. Soeiro Viegas, Cavalleiros, Prelados, Damas, D. Mendo, D. Violante, D. Bibas e Bonamiz. Os Cavalleiros e Damas passeiam e dançam.
(A uma dama que traz pelo braço.) Foi bello, magnifico este nosso jogo do tavolado.—Nunca damas mais formosas fizeram nascer dezejos de gloria em corações de mais ardentes e destros cavalleiros.
Lembraram-vos hoje essas batalhas verdadeiras, onde sois sempre o primeiro, sr. D. Gonçalo de Sousa?
(Aproximando-se.) Feliz o cavalleiro que ganhou hoje uma coroa para vos offerecer, linda Branca.
Não sejaes invejoso, D. Lourenço Viegas, que é feia a inveja em quem vale tanto: vossos feitos de armas já vos mereceram o nobre titulo de espadeiro.
Mas nem por isso lhe tem valido grandes{D2. Pg. 43} triumphos em amor. É por que o amor não se leva á espada, como se levam os infieis sarracenos. As mulheres são infieis, que se conquistam pela brandura, e que se conservam pelo galanteio. O braço forte não serve para conquista destas, D. Lourenço.
(Rindo.) Que tem isso?—Não se póde ser grande em tudo. (Vão para o fundo da scena.) É melhor cubrir-se um cavalleiro de gloria nas batalhas do que nos amores.
(Vindo á frente da scena com uma dama.) D. Sancha, sois a formosa de todas as lindas damas de Portugal. Um mouro chamar-vos-hia uma huri, eu adoro-vos como a um anjo.
É nos campos da lide que se aprende a lisonja?
Aprende-se a ser franco, e leal...
(Rindo.) Como todos os da vossa raça, dom namorado...
Excommungado bobo!
Não ha nada que esfrie uma paixão como uma gargalhada a tempo. O bobo é o avesso de Cupido. Ri-se das coisas serias, o bobo; e Cupido e todos os seus escravos tomam a serio até os ridiculos galanteios do amor.
(Um cavalleiro e uma dama vêem á frente da scena.){D2. Pg. 44}
Está sempre triste, e cuberta de lucto, a infeliz D. Gontrade.
Vistel-a hoje aqui? Em quanto o filho, D. Mendo...
O namorado D. Mendo. Vede com que olhos elle admira a filha de D. Pedro Framariz. Feliz Mendo!
Em quanto o pagem d'El-Rei...
Agora cavalleiro. Ganhou a espada na batalha de Ourique. Foi o sr. D. Affonso Henriques, quem o armou com a sua propria mão.
Em quanto D. Mendo andou pela guerra, a mãe, D. Gontrade, passou os dias e as noites fechada, a rezar sempre. Aquella mulher tem dôr ou remorso que lhe dilacera o coração.
Estava ali na capella esta manhã: parecia ainda mais triste que de costume.
Pobre D. Gontrade! Dizem que lhe mataram o marido! É uma historia tenebrosa, que ficou sempre em mysterio, e de que pouco se sabe.
Seu filho Mendo vae casar....
Assim se diz. Mas a fallar verdade, eu duvido.
(Um grupo de cavalleiros vem á frente da scena.)
Foi uma rija arrancada aquella de Ourique.{D2. Pg. 45} El-Rei D. Affonso derrubou de um golpe dois daquelles perros infieis.
Ismael pouco resistiu.
Nunca, por vida minha, nunca vi uma tão grande róta.
Parecia que o braço de Deus pelejava por nós.
E que alegria a do exercito quando depois da batalha, levantámos por nosso rei a D. Affonso Henriques.
Agora já temos rei independente.
Temos ainda que combater muito pela independencia de Portugal.
(Outro grupo de cavalleiros vem á frente da scena.)
É um leal cavalleiro D. Pedro Framariz.
Honrado como Egas Moniz.
Não tanto. Elle não se hia de certo entregar nas mãos dos inimigos para não faltar á palavra dada, á lealdade jurada.
Lá isso é verdade; D. Pedro Framariz não era capaz de tal.
(Rindo.) Tem mais amor á pelle, e menos amor à honra. (Vae-se cantando.)
Estes bobos!...{D2. Pg. 46}
Dizem que a filha caza com D. Mendo, o antigo pagem d'el-rei. É um cazamento muito honroso para D. Mendo.
Estão namorados, mas cazarem... Não cazarão talvez.
É a vontade d'el-rei, que se cazem.
Entre as duas familias houve n'outro tempo alguma coisa.
Um homizío... dizem.
(Aproximam-se de Violante que está assentada.) Violante, ficae; deixae sahir todos.
Fico. (D. Mendo affasta-se.)
Um grupo de velhos cavalleiros e de prelados, vem á frente da scena
Vae-se demorando o banquete.
Muito mais do que se demoram os nossos golpes quando pelejamos contra os excommungados da Moirama...
As nossas orações no côro tambem se não demoram tanto tempo como esta ceia.
Não tarda. Ainda bem que se demora porque podemos conversar.
(Na salla d'armas, á porta.) Nobres, ricos-homens,{D2. Pg. 47} infanções, cavalleiros, srs. de prestamos e alcadarias, el-rei de Portugal vos convida a vir tomar parte no banquete.
Em fim!
Vamos, vamos.
(Sahem todos, todos excepto D. Mendo e D. Violante. D. Bibas esconde-se detraz de um pilar.)
D. Mendo e D. Violante, D. Bibas (escondido.)
Violante!... minha Violante!
Mendo?!
Uma palavra... uma palavra, por minha alma.
Mendo, nem um instante passei sem pensarem vós: e eu tambem estava esperando com ancia este momento para vos ouvir dizer-me uma palavra de amor.
E não teve, Violante, não teve essa bocca um sorriso para mim, nem esses olhos tiveram um olhar terno para me dar até agora?
Ai! que nem eu sei dizer-vos o que sinto, dizer-vos o que me deteve diante de toda essa gente! Ha uma coisa occulta, Mendo, que me prende a palavra e o gesto quando quero mostrar-vos tudo o que sinto em mim. Faltam-me forças, faltam-me faculdades para tanto.{D2. Pg. 48}
Falta-vos o amor... talvez.
(Sorrindo com muito amor.) É desleal essa palavra, cavalleiro. Eu conheci um pagem que só dizia o que pensava, com verdade, e sinceramente.
O pagem, minha Violante, seria verdadeiro e sincero, seria: mas não valia mais do que o cavalleiro, que d'elle herdou o maior amor, que do mundo tem havido.
Que sustos tive, em quanto durou a guerra! Parecia-me que não vos tornaria a vêr, e essa ideia fazia-me chorar horas esquecidas, fechada no meu oratorio.
Eu não podia morrer, porque vós me estaveis esperando.
Não vos lembrou a triste Violante, quando, o primeiro entre todos, vos lançastes por meio das lanças dos inimigos?
Lembrou, lembrou. Ia lá buscar esta espada... Não era eu que ia, não; era a esperança de vir aqui ajoelhar-vos aos pés e dizer-vos: «Violante, tenho um nome de cavalleiro, tenho um logar entre os ricos-homens de Portugal, tenho esta mão que é leal e que está pura... offereço-vos, tudo minha Violante!»
(Apertando a mão de D. Mendo.) Acceito.{D2. Pg. 49}
A fr. Bermudo devo a ventura de ouvir a minha Violante dizer-me esta divina palavra.
(Com susto.) A fr. Bermudo! Como? Que tem esse astrologo agourento com a nossa felicidade?
Não quero ser eu só a bem dizer esse homem inexplicavel; por isso, aqui mesmo no meio da nossa alegria, quero contar o que elle fez para me salvar.
Para vos salvar?
Estava quasi ganha a batalha; na ala esquerda porém, ainda uma das hostes dos almoravides resistia como um muro de ferro aos ataques impetuosos dos cavalleiros christãos. Tive vergonha de vêr os nossos recuarem deante dos inimigos, entre os quaes combatiam mais de trezentas mulheres; e, com uma espada na mão precipitei-me sobre a phalange sarracena; rompi a primeira e segunda linha, e quando me voltei para vêr se os cavalleiros portugueses me haviam seguido, achei-me de todos os lados cercado pelos infieis. A minha morte era certa: o braço já ía cançando: e se não fôra a vossa imagem, que estava sempre presente ao meu espirito, ter-me-hia deixado morrer. Subitamente, porém, quando já, fechando os olhos, e pronunciando o vosso nome, me arremedava ás cegas sobre os inimigos, ouvi por detraz de mim um pavoroso clamor, e vi logo depois um soldado que derrubava tudo com o seu braço de Hercules. N'um instante, vi abrir-se uma{D2. Pg. 50} larga estrada juncada de cadaveres; e foi assim que me salvei da morte.
E o soldado?
Era fr. Bermudo. Violante, a fr. Bermudo devo esta felicidade, tão grande, que nem eu a posso comprehender, nem a posso sentir toda, que não tenho coração para tanto. É uma felicidade que mata!
Tem-me consumido a vida, mas amo-a.
Oh! Que nunca julguei que tão cedo nos chegasse tamanha ventura! (Beija-lhe a mão—D. Bibas dá uma gargalhada aguda e estridente.)
Jesus!
(Levando a mão á espada.) Quem ousaria?!
(Vae-se cantando com, voz lugubre.)
«Vivem loucos namorados
Vendo futuro formoso
Onde não ha mais que a dôr
De um mysterio tenebroso.»
Bobo.
D. Bibas que anda fazendo pelo castello a sua ronda de escarneo.—Louco!
(Entrando.) D. Mendo, os loucos sabem mais ás vezes que os avisados—Sr.ª D. Violante ide-vos, vosso pai procura por vós.{D2. Pg. 51}
Tudo nos separa...
Em breve nada nos poderá separar um do outro. Adeus, Mendo, adeus! (Sae.)
D. Mendo e Frei Bermudo.
Para que vieste separar-nos, quando estavamos a matar as saudades d'esta longa ausencia? Fr. Bermudo, és tu sempre quem separa Violante de mim.
Não sou eu; é o teu destino fatal.
Mão me repitas outra vez os teus agoiros. Não queiras que eu te maldíga; não queiras que eu tome odio a ti, e á vida...
Depois d'esse teu penar, virá a gloria. Assim o dizem os astros. (Sáe.)
Este homem, este frade é incomprehensivel. As suas palavras pezam sobre mim; quando o vejo, não sei se a sympathia, ou o odio me fazem pular o coração no peito. Devo-lhe a vida a este homem; e, comtudo, parece-me que lhe não posso ser grato.—Sou cavalleiro já, e agora saberei o segredo tremendo, que desde a infancia me involve, sem que o possa conhecer. Minha mãe—quando{D2. Pg. 52} ao chegar da guerra a fui vêr—recebeu-me com assustadora solemnidade; deu-me apenas um beijo que me fez frio. Está mais pallida agora; e ha nos seus olhos um clarão sinistro que me faz medo. Sinto caminhar para mim o terrivel segredo, e tenho vontade de fugir para o não ouvir. É covardia... é fraqueza, isto!
D. Mendo e D. Gontrade
(Entrando.) Meu filho...
(Estremecendo.) Minha mãe...
Estás aqui, Mendo, longe das festas, triste e só? Tens razão, filho; porque não pódes, não deves ter nem alegria nem descanço, em quanto não tirares vingança do assassino de teu pai.
Que dizeis, minha mãe? meu pai morreu assassinado, já vol-o ouvi dizer; mas quem o matou é o que eu não sei ainda.
Mendo, até ao dia em que ganhaste—gloriosamente, bem o sei—essa nobre espada, não eras mais do que um pagem, uma criança. Esse tempo passou: tens já um nome de cavalleiro que teu pai tornou illustre, e que tu deves conservar puro e sem mancha. Mendo Paes, o teu nome está deshonrado. A mão de um homem desleal manchou-lhe a pureza, deslustrou-lhe a nobreza. D. Paio Ramires teu pai, foi assassinado, covardemente{D2. Pg. 53} assassinado; e o seu assassino vive ainda!... Ficas assim calado?!... Não se te revolvem lá dentro os desejos da vingança? Meu filho, enganar-me-hia a esperança? Não serás tu digno de teu pai?
(Com terror.) Quero-vos muito, minha mãe. Esta vingança, porém, faz-me susto. Não sei que pressentimento me diz que esta vingança me hade matar a mim tambem.
Susto! tens susto de vingar a morte de teu pai!? Não te creio, meu filho, porque respeito, em ti, o chefe da nossa familia. É hoje o dia da vingança, Mendo, uma vingança cruel, tremenda, publica para que todos a saibam. A vingança é um acto horrendo e criminoso; mas a honra exige que esse acto se cumpra.—Foi a ultima vontade de teu pai. É no meio do banquete, entre os risos e os gritos do triumpho, que te espera a victima. (Tirando um punhal.) Foi esta a arma traidora que serviu ao crime; sobre ella ha ainda o sangue de teu pai ennegrecido pelo tempo, mas não limpo ainda da deshonra. Guardei-o sempre como uma reliquia sagrada, para t'a confiar na hora do castigo...
O punhal é arma de traidôr; minha mãe, tenho esta espada...
E se morresses?... se esse homem te matasse tambem?
Morria como cavalleiro.{D2. Pg. 54}
Quem vingaria teu pai?—Não, Mendo; é com este ferro que o infame deve ser punido... O assassino de teu pai é...
Callai-vos... callai-vos...
Que tens?
Tenho medo!
Medo?!...
Se esse bomem fosse?...
Quem?
O pai da mulher que amo..
Morreria... da tua mão receberia a morte.
Minha mãi!
É a hora da vingança, meu filho. Quando uma familia nobre, como a nossa, se acha deshonrada, e offendida pela mão de um traidor, não deve n'ella haver descanço, nem alegria, em quanto a offensa não fôr castigada, e a sua honra purificada da nodoa de sangue que lhe apagou o brilho.—O homem que matou teu pai, Mendo, vive junto de nós, é um dos ricos-homens de D. Affonso Henriques, é D. Pedro Framariz.
D. Pedro! Jesus, meu Deus!...—Elle!... não minha mãi, isso não póde ser.{D2. Pg. 55}
Hesitas?
O pai de Violante? É um nobre cavalleiro, que tem um logar distincto entre os cavalleiros mais leaes á patria, entre os mais ardentes defensores da fé.
O sangue de teu pai pede sangue, meu filho. D. Pedro matou covardemente D. Payo Ramires; e tu não podes, não tens direito de trazer essa espada, em quanto em Portugal poderem dizer de ti: «Aquelle homem desconhece os principios da honra, porque não vingou ainda a morte de seu pai.»
Mais tarde; ainda não...
Hoje... agora.—Ha dez annos, a esta mesma hora vi eu cravar este punhal no coração de teu pai... de meu marido.—Foi uma noite horrivel... uma noite de sangue e infamia!
Assassino!... eu!...—Minha mãe, a vingança é um crime covarde e miseravel. Uma lança que se cruza com outra lança em repto leal, á luz do dia, diante de todos, merece a sympathia de todos; um punhal que nas trevas escorrega cautelosamente, e se crava frio e silencioso nas carnes de um homem desarmado, só merece desprezo.
A vingança não é crime, quando a exerce um filho sobre o assassino de seu pai.{D2. Pg. 56}
E Violante?...
Entre ti e ella ha um cadaver.
Perdoai, minha mãi. Sou fraco de coração. Fallece-me o animo.
Mendo, teu pai deixou a sua maldição em herança ao filho, se elle o não vingasse; e a minha maldição juntar-se-ha á d'elle...
Que Violante não veja... que não o saiba!
Covarde! vês este punhal tincto ainda de sangue, e hezitas, e tremes...
Não posso... Aquelle anjo!—Pois eu hei de ser odiado por Violante! (Com muita desesperação.)
A honra do nosso nome, e a memoria de teu pai pedem vingança! (Dando o punhal a D. Mendo, que o recebe com terror) Vinga a morte de teu pai, ou sê maldicto! (Sáe.)
D. Mendo, só
Meu pai, meu pai, levantae-vos do sepulchro e perdoai... que me salvaes, que salvaes vosso filho! (Olhando para o punhal.) Este sangue ha de ser lavado com outro sangue?! Assim o exige{D2. Pg. 57} a honra de uma familia nobre!... Meu pai, se vos basta o sangue de um homem, dar-vos-hei todo o meu! (Chorando.) Se as lagrimas de um filho podem lavar a nodoa tremenda d'este ferro, derramarei o meu pranto sobre elle em quanto viver!... A vingança dura pois mais do que a vida?! O espirito depois de separado da terra, não perdôa, não esquece tudo?! Pois n'esse mundo mysterioso e todo espiritual, para aonde as almas vão depois da morte, tambem ha estas ruins paixões, que teem feito da humanidade um bando de feras? Essas paixões duram a eternidade? Onde está o descanço, aonde está a paz? Onde existe o ceu?—Ai! Quem me livra deste martyrio? Quem salva a minha honra? Quem dá força á minha alma, para que se não perca... para que não renegue a Deus?!
D. Mendo e Fr. Bermudo
Tira da fé a tua força, e não renegarás a Deus. A desgraça é difficil de supportar; e quando pela primeira vez ella nos entra no coração, parece-nos impossivel que o coração a possa conter, que o coração não estale.
Salva-me, salva-me... Fr. Bermudo, sei tudo. Violante é filha do assassino de meu pai. Minha mãi confiou-me uma vingança... que eu não tenho animo de executar.
Péza-te essa vingança? Dá-ma... que t'a acceito.—É{D2. Pg. 58} o ultimo sacrificio que faço ás malditas paixões humanas: faço-o com horror, mas não quero que tu sejas odiado pela candida Violante. Esse odio matal-a-hia a ella!
Como te hei de confiar uma vingança que é só minha?
Eu tambem tenho direito de a tomar para mim.
Porque?!
Não queiras penetrar o enigma da minha vida. Juro-te que não é deshonra para ti ceder-me essa vingança.
E Violante? Já não podemos ser um do outro. É impossível esta união.
Não te disse que Violante não podia ser tua?
Que hei-de fazer?
Esquecel-a... se fôr possivel.
Não, não... não posso... não é possivel.
Pobre de ti, que a amas tambem!
E ella?... Se morrer, meu Deus!
A sua alma é pura... é um anjo, os anjos a esperam...—Que morra ao menos com o seu amor: que morra, amando-te. Odiar-me-ha a mim... mas que importa? Esse odio fará mais{D2. Pg. 59} miseravel ainda quem do mundo só conheceu os amargores. Que importa?
(Chorando.) Que padecimento!... Que martyrio!... Maldita a vida, em que ha tanta dor, e tanta miseria!...—Oh! A minha felicidade, as minhas esperanças eram um escarneo cruento!... A maldição de meu pai caiu sobre mim, e tornou arido, e deserto o meu coração!... Deus criou o homem por escarneo...
(Pondo-lhe a mão na boca.) Calla-te, não blasfemes.
(Abatido.) Não... não devo blasfemar porque vou morrer.
Não percas assim o animo, homem.—A alma é infinita nas suas forças, inexgotavel nas suas consolações: quando parece já extincta de todo, acorda, toma alento, levanta-se, e fica forte como d'antes.
A minha morreu de todo!
Ha homens que teem padecido tanto... muito mais do que tu, e que soffrem ainda estes tormentos da existencia. Em quanto a alma póde ter amor ou odio, vive. É a extinção das paixões, que é a morte. O nada é que o espirito não póde suportar. O homem crê na sua propria immortalidade, porque quando o corpo está a ponto de destruir-se, a alma ainda conserva o pensamento, e as paixões. Tens a gloria ainda, Mendo. Tens a fé...{D2. Pg. 60}
Essa!... Não sei... (Pauza.) Tenho fé, tenho.
Tens um allivio, uma esperança—então bemdicta seja ella.—Deixa-me para mim essa tua vingança, Mendo. Violante odiar-te-hia, e morreria na desesperação, se tu lhe assassinasses seu pae.
(Dando-lhe o punhal.)Ahi tens esse punhal... É um presente maldicto, esse que te dou.
(Beijando o punhal.) Este sangue, este sangue!... Oh! Chegou a hora que já foi tão desejada, e que tão temida é agora! (Á parte.) Terei eu n'este solemne momento o poder que até hoje me tem falecido?—Irmão, meu irmão... É por teu filho este sacrificio! Pede a Deus que me dê forças, meu irmão!
Que tens?
(Tranquillo.) Ámanhã teu pai estará vingado.
Violante!... Violante orphã, só, e desgraçada...—Desgraçado de mim!
E eu, maldicto por ella! Vou pedir a Deus que me perdoe, e que me inspire... Sou fraco, sou um um fraco (Entra para a capella do fundo, e vae ajoelhar deante do altar).{D2. Pg. 61}
D. Mendo, e depois D. Affonso, D. Violante, D. Pedro Framariz, Damas, e Cavalleiros da Côrte
E eu tambem, já nem tenho alento para viver!—Ó minha fé, minha fé, accende-te nesta alma, para que eu possa supportar este lanço terrivel.
(Entrando.) D. Mendo Paes, venho cumprir o que vos prometti, no dia da victoria. (Aos cavalleiros.) Pedimos agora, e obtivemos de D. Pedro Framariz rico-homem, e filho d'algo do nosso reino, a mão da sua filha D. Violante, para o muito nobre cavalleiro D. Mendo Paes.
Não posso acceital-a... não posso!... (Cahindo de joelhos.) Violante!... Perdão!...
(Desmaiando.) Mendo!
O que se oppõe a este casamento, Mendo? O que se oppõe á tua felicidade agora?
(Á porta da capella apontando para o altar.) A vontade do céu.
FIM DO 3.º ACTO.{D2. Pg. 62}
A cella de Fr. Bermudo no mosteiro de Mumadona. Alguns instrumentos de alchimia, livros e pergaminhos etc. Uma porta do lado direito; outra ao fundo deitando para um pequeno oratorio, em que se vê uma cruz com toalha; uma janella do lado esquerdo. É noite, uma lampada alumia a scena.
Frei Bermudo (Só.)
(Olhando para o céu pela janella aberta. Ouve-se do interior do theatro uma harmonia solemne ao longe, fazendo apenas um murmurio brando.) Os espiritos superiores caminham invisiveis por entre os astros. Accompanham-os essas harmonias infinitas das constellações, que os sentidos imperfeitos dos habitantes da terra não podem ouvir, mas que a rasão atrevida ousa advinhar e comprehender. Caminham pelo céu os espiritos invisiveis, e no seu rapido vôo vão escrevendo com as estrellas os destinos dos homens. Quem póde lêr claramente essas phrazes, que duram um instante apenas, que são ephemeras como a existencia do homem, essas phrazes escriptas n'uma lingua de que os astrologos conhecem apenas algumas palavras soltas? Quem póde duvidar de que no ceu se escreve a historia do futuro de cada homem? Quem póde duvidar?... Eu, eu mesmo duvido. O orgulho talvez seja o creador da astrologia. Pois o homem merece que{D2. Pg. 63} os espiritos superiores escrevam o seu destino? O que sabemos nós todos? Sabemos até onde chega a nossa ignorancia e nada mais.—O homem, em vigilias longas e virtiginosas, gasta a vida, séca a intelligencia, destróe a fé e a pureza de espirito, mas não penetra o segredo d'essas palavras, lançadas no céu pelos poderes da natureza. (Pauza.) Caminha, ó minha pallida estrella, caminha... caminha astro de funebre agouro; que em breve marcarás a hora mais fatal da minha existencia.—(Longa pausa; calla-se a orquestra). Hoje maldicto... hoje serei amaldiçoado por Violante.—Tomei para mim esta tremenda vingança... heide ser eu o assassino de D. Pedro, do pai de Violante.—Se ao menos esta vingança podesse apagar da memoria de todos o crime de D. Pedro Framariz, depois o meu querido Mendo, e a pura Violante podessem ser felizes!—Ai! Que dôr será a desses desventurados agora que sabem já o tremendo poder que os separa!... Que vida, que existencia esta minha!... Um abismo... é um abismo a minha alma! Um abismo onde não houve nunca senão tres paixões... a amizade, a vingança, o amor. Uma amizade sancta, profunda, unica, exclusiva. Um desejo de vingança frio, lento, sem enthusiasmo, como se houvera nascido no coração de um cadaver. Um amor... um amor que pode fazer esquecer a vingança... que pode esquecer-se a si proprio para só desejar a felicidade d'aquella a quem se consagra.—Ó Violante... quero-te tanto, que vou buscar o teu odio, para que tu não odeies o homem que te captivou o coração. (Silencio; ouve-se de novo a orquestra muito longiquamente até ao fim do monologo.) Se nesses livros, onde homens orgulhosos escreveram{D2. Pg. 64} o que elles chamavam a sua sciencia, eu podesse descobrir o segredo de Deus!... Se eu podesse criar um talisman que subjugasse o destino!... Se eu tivesse pelo poder do pensamento, e pela grandeza da vontade, força para desfazer o passado! Ambição!... orgulho!... loucura! O passado não pertence já a nenhum poder, nem mesmo ao poder infinito de Deus! Quizera ao menos ver um desses espiritos superiores, para lhe fallar, para saber delle os mysterios do material e do immaterial... (Com abatimento.) para saber quando ha de acabar este padecer, esta minha vida.
Fr. Bermudo e D. Violante
(Entrando toda vestida de branco.) Fr. Bermudo.
Um espirito... um anjo... falla... falla...
Fr. Bermudo, escutae-me.
Violante! aqui!
Vim para vos pedir a paz... o repouzo, o que só me póde salvar, o que vós só me podeis dar.
(Baixo.) Que sinto, meu Deus?... Que dor, e que alegria me dilaceram aqui o peito?... (Alto.) Dizei, sr.ª D. Violante, que quereis de mim?{D2. Pg. 65}
Venho pedir-vos...—Escutai-me. Já sei tudo, conheço o que para sempre me separa de Mendo. Sei que esse que para mim era a alegria e a vida perdi-o para sempre... e talvez que nem por elle seja amada já; eu a filha do homem que...—Horrenda idéa!—Perder uma felicidade tão grande, assim de repente, é uma dor com que não pode este coração—Fr. Bermudo, sois forte, tendes uma alma superior a estas fraquezas do mundo... A minha alma não é assim. Uma pobre mulher, como eu, tem um espirito fraco, e que não pode resistir á dor extrema...
Que quereis... que quereis de mim, D. Violante?
Quero o que não me dareis talvez. Mas estou resolvida... Nada me pode fazer mudar de resolução, porque não é a vontade que me impelle, é o desalento; não é a força, é um abatimento desanimador; não é a desesperação é a esperança de acabar com um martyrio com que não posso.
Assustam-me essas palavras!
A vida é impossivel assim.—Fr. Bermudo, estou decidida a morrer.
Violante... Que dizeis?
Mendo acabou, morreu para mim..—E sem luz, e sem alivio, que vida seria esta minha!?—Uma existencia nas trevas, sem esperança nem consolação.{D2. Pg. 66}
Como tem sido sempre esta minha... Perdão, D. Violante.—Que vos importam a vós os meus padecimentos?
(Com alegria. ) Sabeis o que é uma dôr, dessas que matam? Julgava encontrar em vós um ente superior aos homens, e tinha medo. Mas agora... posso fallar-vos da minha dôr, pedir-vos... a morte, que desejo, que espero; porque é a paz para o coração.
Tende animo, paciencia, resignação; se o mundo se fechou para vós, ficavam-vos abertas as portas da igreja, onde ha consolações para todos.
A oração é consoladora; a fé póde dar allivío ás grandes magoas; mas para orar é preciso pensar em Deus, para ter fé, é preciso força na alma e eu só penso em Mendo, e na minha alma não ha senão desalento.
Mendo tambem vos amava muito; e daqui a horas fará voto, na ordem dos Templarios, de consagrar a vida ao serviço de Jesus-Christo.
Mendo é homem, tem força no coração. A dôr—bemdicto seja Deus!—não lhe matou a alma, como a mim.—Olhae, fr. Bermudo, eu já não posso viver, e a morte não me faz horror, antes a amo, e a desejo. Mas o que me assusta é a dôr; é a idéa de me sentir rasgar o coração com um ferro, ou ficar dilacerada ao deitar-me n'um precipicio, que me repugna.—São isto sentimentos{D2. Pg. 67} que um homem como vós, de coração forte, não póde comprehender talvez!
Eu comprehendo, e respeito esses sentimentos.—As obras de Deus, a belleza e a graça, só a mão sacrilega de um barbaro as póde destruir sem horror.
Não seria possível alcançar, por um desses venenos que a sciencia tem descoberto, uma morte, sem dôr, e sem agonia?
Ha... talvez.
Fr. Bermudo, é um desses venenos, que eu venho pedir-vos.
Eu... pois eu hei-de dar-vos a morte?
Não é a morte, é a paz; é o termo desta dor infinita, que me dilacera. Por piedade dae-me esse veneno... senão, irei buscar a morte n'um precipicio, ou n'um punhal.
(Meditando.) Tem rasão... Tendes rasão, Violante. E hei de ser quem lhe dê a morte... Eu que a amo!
(Com horror.) Que dizeis?... Vós!... (Querendo fugir.) Virgem Maria!
(Detendo-a.) Ficae, Violante, ficae.—Este amor é como a vaga esperança, o suave pressentimento, a doce attração que a alma tem para as bellezas do ceu.{D2. Pg. 68}
Não sou eu só a padecer no mundo, meu Deus!—Se esse amor é, como dizeis, triste, e sem esperança, como é agora a minha existencia, deveis intender, fr. Bermudo, o padecer, a angustia da minha alma; e não podeis, não deveis recusar-me o que vos pedi.
O suicidio é um crime, Violante.
Antes o suicidio do que renegar a Deus... E esta dor far-me-ha duvidar da misericordia divina.
Um crime, que Deus, não perdôa, talvez.
Deus tudo póde perdoar, porque a sua bondade é superior a todos os crimes dos homens.—Não me deixeis mais tempo neste martyrio! Fr. Bermudo, pela minha alma, por esse amor, por esse vosso amor, que é tão puro e tão sublime, vos peço a paz. Quero morrer, sem uma longa, sem uma dolorosa agonia.
(Dando-lhe um dos frascos que tem sobre a meza.) Aqui tendes um penhor do amor... do amor, que morreu já.—Agora acabou tudo para nós... acabou tudo para mim!
(Pegando no frasco.) É a paz que me daes... Irei esperar por elle no ceu!... Deus hade perdoar-me este crime Padre, não reveleis este segredo a ninguem.
Não.—É meu. (D. Violante vae para sahir.){D2. Pg. 69}
(Com anciedade.) Violante, não me direis ao menos uma palavra?!
Deus vos dê o descanço da morte. (Sáe.)
O descanço da morte...—Porque não tenho eu ousado buscal-o já, para pôr termo a esta agonia do espirito, em que ando ha dez annos?—Não sei que poder me prende á vida. É medo... é medo do segredo, que se esconde além do sepulchro.
D. Mendo e Frei Bermudo
Aqui estou, Fr. Bermudo. Venho já para ficar no convento, até me haver separado do mundo, professando na ordem dos templarios.
Mendo!... Encontraste?...
Ninguem. Vim pela porta do campo, para não ser visto. Na igreja está tudo preparado para a minha profissão, não é verdade? Estou com desejo de professar, para sentir quebrados todos os laços que me prendem ao mundo. (Pausa) Ella como ficou? Vistel-a?—Eu fugi porque não podia...{D2. Pg. 70}
Está mais socegada já.
Pobre Violante!—El-Rei?
Mandou elle proprio preparar tudo aqui no mosteiro para a tua profissão.
Disseste-me que Violante estava mais socegada, que já não padecia tanto? Bemdicto seja Deus. (Pauza.) Ai! quem sabe se ella se esquecerá de mim!?
Esquecer-se de ti?!... talvez; se o pensamento tambem morre.
E se ella me esquecesse, e se amasse outro, que desesperação não seria a minha!
E é assim que este homem paga tanto amor! Duvidando della!
Que dizes?
Digo, que não comprehendes o amor, que póde conter um coração de homem; que não sabes o que é uma paixão, que destroe, que devora a existencia, que está sempre no fundo da alma, inabalavel e tremenda, dominando o pensamento, matando o desejo, e seccando a esperança, digo... que não comprehendes esse amor.
Frade, tu amas Violante? Tu...
Amo-a, sim; mas não receies deste amor, que{D2. Pg. 71} nasceu n'um templo, e irá esconder-se debaixo da terra. Amo-a e ouso... e sinto alegria em fallar deste amor, porque chegou a hora do soffrimento, o instante do martyrio.
Fr. Bermudo, amas Violante? Não repitas essas palavras desvairadas...
Nenhum de nós tem já direito de amar, porque para ti, e para mim este amor é um crime. (Pausa.) Este meu não, que me salvou a alma... que eu sentia perder pelo descrer. Quando ao atravessar o deserto, para ir ao Santo Sepulchro do Redemptor, cahi sobre as areias ardentes, quasi morto pela sede... um anjo me appareceu e me salvou... Em Violante, encontrei depois a imagem do meu Anjo Redemptor: é a mesma fronte pallida do anjo é o mesmo sorriso meigo e triste, o mesmo olhar celeste e candido... a mesma voz... Oh! mas a alma dessa mulher é mais pura do que os espiritos do ceu Amei-a! Amei Violante.
(Chorando.) Meu Deus, tende piedade de mim! acabae com esta dôr!... matae-me!
Quando a voz da fatalidade, troando nos espaços, pronuncia a sentença, que nos condemna, devemos escutal-a, e ter resignação.
(Apparecendo á porta da esquerda.) Fr. Bermudo, está á porta do mosteiro uma penitente, que vos deseja fallar.
Conduzi-a aqui, irmão. (O monge sae.) Mendo, vae orar por nós ao Senhor.{D2. Pg. 72}
Ficarei ali a fazer penitencia, até que me venham buscar, para ir fazer profissão na igreja. É tarde já; d'aqui a poucas horas é manhã.
(Levando-o ao oratorio do fundo.) Espera aqui, em quanto vou saber o que me quer essa mulher. (D. Mendo entra no Oratorio. Frei Bermudo fecha a porta.)
Fr. Bermudo e D. Gontrade
Padre, estás disposto a ouvir a ultima confissão de uma grande peccadora?
Aquelles que, como eu, se votaram ao serviço de Deus, não negam nunca as suas consolações aos que padecem. Mas aqui?
Se as consolações da religião podem fazer esquecer os remorsos profundos, e as infinitas saudades, eu preciso dellas já.
Porque me não mandastes chamar, senhora; iria eu, como é do meu dever, ter comvosco.
Saberieis então quem eu sou; e o que vou confessar-vos interessa a honra de uma familia nobre. Posso dizer-vos o meu crime, mas devo esconder-vos o meu nome, para que não recaia sobre outros a deshonra, com que esse crime manchou um nome illustre.—Padre, remorsos ha que não podem ter fim... nem talvez com a morte...{D2. Pg. 73}
Com o arrependimento e a fé podem apagar-se da alma muitos pensamentos tenebrosos; muitos martyrios podem ter fim.
Mas Deus perdoará sempre á peccadora, que se arrepende?
Talvez; que a sua misericordia é infinita.
Escutae-me então, padre, e pedi a Deus que seja misericordioso comigo; porque me sinto morrer, e vou ser julgada no tribunal supremo.
(Áparte.) Esta voz!... Esta voz é de D. Gontrade; Que vou eu ouvir, meu Deus! (Assentando-se.) Dizei.
(Ajoelhando.) Dae-me forças Senhor! (Pausa.) Padre, eu era feliz, quando um nobre cavalleiro de Portugal me offereceu a sua mão, e o seu nome.—Não se póde amar com mais amor, não se póde querer mais da alma, sacrificar mais por uma mulher, do que esse homem o fez por mim!! Ouvi como eu lhe paguei tanto amor! As guerras do Conde D. Henrique com os moiros chamaram-no para longe de mim: fiquei só em quanto elle peleijava por essas terras distantes. Passaram mezes, sem que eu houvesse novas de meu marido. Um dia, estava eu assentada no eirado de minha casa, lancei os olhos ao campo, e vi vir ao longe um cavalleiro, seguido de muitos homens d'armas, julguei que fosse elle, e corri a recebel-o. Foi a ultima alegria que tive. Quando o cavalleiro se aproximou... conheci que não era{D2. Pg. 74} quem eu desejava. Perguntei-lhe, se pelas guerras em que andára vira meu marido... respondeu-me, que expirára n'um recontro com os moiros, peleijando como um heroe; assegurou-me que todo o exercito, e elle mais que todos havia chorado muitos prantos sobre a sua sepultura. Mais de um mez chorei a morte de meu marido, com uma dôr amarga e sincera. Mas a minha alma era fraca; não sabia soffrer. Depois do pranto vieram as saudades; depois as consolações; e depois o amor por esse mesmo homem, que me havia trazido a fatal nova.
(Com muita anciedade.) E vosso marido!?
(Continuando.) Passei alguns dias no delirio do crime, sem remorsos, sem arrependimento; por que amava de coração, e julgava ser amada. Esses dias foram para mim como um sonho, hoje apparecem-me como um espectro.
E o acordar desse sonho?...
N'uma noite, estava eu com esse homem, entregue a esse enlevo d'alma em que se escondia um crime tremendo, quando ouvi um ruido estranho por toda a casa, senti, por um pressentimento subito o frio da morte correr-me pelas veias. Era meu marido que voltava da guerra.
E então?...
Então vi apparecer diante de mim, que havia quasi perdido a razão, um homem ameaçador, e tremendo, o rosto pallido, os olhos ardentes, a{D2. Pg. 75} mão armada. Apoderou-se de mim a vertigem... Ouvi um grito de agonia, que me gelou... e depois, o baque de um corpo em terra.
Meu marido—Nessa hora consumou-se o meu crime, nessa hora começou o castigo! O homem, que me enganou, abandonou-me naquella dôr.
(Levantando-se com horror.) Oh! maldicta de Deus!... estás maldicta, mulher!...
(Levantando-se e deixando cair o veu que lhe esconde o rosto.) Não é verdade que sou uma mulher miseravel?... Não é verdade que sou maldicta de Deus? Que a misericordia do Senhor não é bastante para tão negro peccado?...
Queres alcançar perdão para esse crime?
Deus de misericordia!
Pede primeiro perdão áquelles que offendeste, e que estão nesta hora padecendo por tua causa. (Abrindo a porta do fundo a que apparece D. Mendo.) Irmão, perdoas áquella mulher a morte de teu pae?
Minha mãe...
(Caindo por terra.) Meu filho!... perdoa-me.
Perdôo.{D2. Pg. 76}
Mendo perdoou-te a morte de seu pae; e eu, D. Gontrade, perdôo-te a morte de meu irmão!
Meu filho!... O irmão de meu marido!... (Caindo com a fronte por terra.) Justiça eterna!
FIM DO 4.º ACTO.{D2. Pg. 77}
Uma casa vasta, de abobada de volta abatida, apparencia triste e arruinada. Ao fundo porta em arco, por onde se vê uma parte de um clausto. Á direita uma porta, á esquerda um grande crucifixo, sobre um altar de pedra tosca, objectos proprios para uso da igreja. A luz dos primeiros raios do sol entra já por uma pequena fresta alta, e pelo fundo, mas a scena está ainda alumiada por dois brandões, seguros por braços de ferro, defronte do altar.
D. Mendo (coberto de armadura, ajoelhado.) Um templario.
Daqui a uma hora estará tudo prompto.
D. Guilherme virá tambem?
O grão-mestre dos templarios vem assistir á vossa profissão, D. Mendo.
E el-rei?
El-rei tambem. D. Affonso quer-vos muito; tem mostrado grande interesse por vós.
Meu bom, meu excellente principe! E fr. Bermudo, esse não póde demorar-se. Já me vae tardando.
Vou á igreja saber em que estado estão os preparativos para logo.{D2. Pg. 78}
Pois ide irmão; que eu aqui fico só, a pedir a Deus que me não abandone.
Quereis alguma cousa mais?
Nada. (O Templario sáe.)
D. MENDO (SÓ.)
É manha já, e Fr. Bermudo sem voltar! Sem me trazer uma palavra della para me dar força! Elle que me prometteu voltar cedo, logo que lhe fallasse! Ama-a, Fr. Bermudo tambem a ama! Quem sabe se nesta hora mesmo de suprema dor, elle ainda tem ciume dos seus prantos, e m'os quer roubar?!—O sangue delle é o meu sangue; é o irmão de meu pae; não póde ser traidor.—Para que quero eu mais ouvir fallar della? Que pode agora haver de commum entre nós ambos? A dor, a dor que é o mais intimo laço que póde existir entre dois corações que se amam. Fr. Bermudo não chega, meu Deus; e nem uma palavra consoladora de Violante me vem dar alento nesta tristeza, nesta solidão do espirito. Fr. Bermudo!... Violante... oh! estes dois nomes encontram-se ás vezes nesta lide maldita do meu pensamento, e esse encontro faz-me gelar toda a fé, mata-me toda a força... Se em mim ha força ainda: que não ha... não ha de certo. Eu já não vivo, que me senti morrer corpo e alma, quando de todo me vi separado della. Até aquella agitação{D2. Pg. 79} convulsiva da desesperação acabou em mim... Já não tenho odio... e nem sei mesmo se ainda tenho amor! (Pausa.) Morri de todo e para sempre.
D. Mendo, e fr. Bermudo
Não percas assim o animo, Mendo.
Bermudo!... E ella?!
Sempre a mesma.
Tem padecido muito?...
Tem... muito.
E tem fallado de mim? Tem-se lembrado... do que já acabou.
É um anjo, que não sabe senão amar; que não póde esquecer o seu amor.
Olha... diz-me a verdade... que quer ella fazer!
Não t'o posso dizer... Sei só, que nunca baixou á terra alma, que mais soubesse sentir, alma capaz de maiores sacrificios!
Conta-me o que se passou. Vistel-a? Que te disse?
Quando ha uma hora sai daqui fui logo direito{D2. Pg. 80} á pousada de D. Pedro Framariz. Procurei a aia de Violante, que me levou ao oratorio, onde esta se fechára... para pedir, o que a todos nós vae faltando... forças para padecer.
E Violante estava...
De joelhos, pallida, immobil, com os olhos erguidos ao ceu, o corpo dobrado pelo peso da dor, a boca semi-aberta como se a oração ao sair já fria e sem alento n'um ultimo suspiro, se lhe houvera petrificado nos labios.
Morta?...
Morta, não. Violante estava viva ainda; sem dar quasi outro signal de vida, a não ser o lento baixar dos olhos sobre mim, e o murmurar baixinho das palavras; n'uma voz suave e angustiosa, Violante perguntou-me o que eu ia alli fazer? Se eu, se alguem ainda se lembrava della?
Se me lembrava della?
Fallei-lhe só de ti, porque só assim me quereria ouvir. Que dor a da pobre Violante! E não ha, não ha remedio, para dores, como aquellas... Oh! os homens que teem descoberto tanto segredo da materia, não poderam comprehender ainda nem um dos mysterios do espirito, não poderam ainda curar nenhuma dessas enfermidades agudas, a que chamam paixões.—São tudo sonhos, são tudo illusões na terra; mas sonhos, mas illusões, que matam.{D2. Pg. 81}
A desgraça é uma realidade!
(Tranquillo). Escuta.—A desgraça é uma provação da alma, que a deve robustecer; que lhe deve dar essa grandeza, signal da sua immortalidade. É tempo de voltar para o ceu esses teus pensamentos, que ainda não soubeste desprender das cousas mundanas.—Daqui a uma hora professarás. É necessário, filho, que o novo cavalleiro do templo seja digno do seu elevado ministerio, esteja pela fé á altura destes tempos de dura provação, de lucta permanente porque a igreja de Christo está passando neste seculo.
Não posso, Fr. Bermudo, parece-me que não posso pensar senão em Violante. Mas vou ver se pela oração comsigo elevar a minha alma até essas alturas sublimes, donde se perdem de vista as miserias do mundo. (Vae lentamente ajoelhar diante do altar.)
E se elle conhecesse, como eu, toda a grandeza, da nossa desventura! Se elle estivesse nesta duvida tremenda, em que o meu espirito vacilla agonisante; ora persuadido de que cumpria um dever, ora aterrado pelo mais cruel remorso, que homens tem sentido!—Violante ainda vive, mas daqui a uma hora...—Eu devo ir arrancar-lhe das mãos aquelle veneno; para que ella não morra! Mas que importa?... Ella quer morrer, e bem sei que vontades poderosas, resoluções firmes como a sua não as vence nem a persuasão, nem a força!—Ainda ha pouco lhe fallei, lhe pedi pelas cousas mais sagradas da terra, e do ceu, pelo amor e pela{D2. Pg. 82} religião, que não cedesse á triste tentação que a arrasta, á fascinação que a cega... respondeu-me só que amava e queria morrer pelo seu amor. (Neste instante entra Violante pela direita, e aproxima-se de Fr. Bermudo, sem que D. Mendo a veja.)
Os mesmos, D. Violante.
Fr. Bermudo.
Violante!
Eu não podia morrer sem o ver uma vez ainda... por isso vim. É um instante; o tempo de lhe dizer que ainda o amo.
Mas agora, se viessem os templarios, os cavalleiros, Violante...
Em elles vindo, vou-me eu. Não me verão. Ide, Fr. Bermudo, deixae-me um instante só com Mendo.
É tornar ainda mais angustiosa esta horrivel separação...
Eu tenho forças; sinto em mim uma força sobrenatural. Ide—Deixae-nos.
(Áparte.) Ainda mais esta dor, meu Deus!{D2. Pg. 83}
D. Violante, D. Mendo—no fim Fr. Bermudo
(Com muita doçura.) Mendo, Mendo... não me sentes aqui, Mendo?
(Que escutou um instante a voz de Violante, e depois se voltou subitamente, e a viu—indo para ella.) Violante! Minha Violante!—Então esta dor, esta separação, era tudo um engano.—Estás aqui, minha Violante!!..
Estou aqui para te dizer adeus para sempre; para te pedir que perdoes...
Perdoar... o que, o que hei de eu perdoar?
Fui eu que te fiz infeliz com o meu amor.—Mas não sabia, Mendo, eu não conhecia essa tenebrosa historia—Perdoa-me... perdoa a meu pae tambem. Eu não quero, não posso ficar com um remorso destes na consciencia.—Quero morrer em paz.
Morrer?
Sim, quando eu morrer, quando for a vontade de Deus que esta minha vida tenha fim, não quero que venha um pensamento funebre, a idéa de um crime não perdoado perturbar a minha ultima oração.—Quem sabe se Deus me perdoará?{D2. Pg. 84}
Quem te não ha de perdoar? O que ha que perdoar a um anjo tão puro como tu?
Mendo, eu bem sei que a honra da tua familia foi offendida: e que ha offensas que um cavalheiro da tua linhagem não deve deixar sem vingança... É assim que pensam os homens; mas Deus condemnou a vingança como um crime abominavel: e tu, Mendo, daqui a pouco vaes professar n'uma ordem, instituida para servir a Deus.—Mendo, pela religião... e pelo nosso amor que foi deixa-me fallar-te ainda uma vez desta felicidade que já passou—pelo nosso amor tão suave para mim, e para ti tambem, Mendo, peço-te por esse amor que perdoes, que esqueças, que te não vingues do pae da tua Violante.
Violante, eu... sabes como te amei, sabes como te quero ainda; que esta separação não é angustia só, é a morte para mim!—Escuta, minha Violante.—Não sei se meu pae me amaldiçoará da sepultura; mas faz-me horror a idéa de odiar teu pae; e vingar-me delle por minhas mãos, não o hei-de fazer nunca.
E perdoas-lhe?
(Depois de uma pauza.) Perdôo.
Bemdicto seja Deus, que me dá esta consolação n'uma tão grande dor?
Minha mãe é que lhe não perdoa.{D2. Pg. 85}
Era o teu perdão, que eu desejava, Mendo. Não podia supportar a idéa que, entre ti e meu pae, se levantasse esse livido e sangrento espectro da vingança.—E a mim tambem me perdoas? Se ainda, por minha causa, padeceres uma grande dor, perdoas-me?
Não te perdôo só, amo-te... hei de amar-te sempre, hei-de de morrer amando-te.
Deus não ha de ser menos misericordioso do que tu.—Mendo, ainda havemos de ser felizes!
Ai, não póde, isso não póde ser. Felizes, nunca.
N'outro tempo, n'outro logar; longe deste tenebroso mundo, muito longe destas paixões da terra, havemos de ser felizes.—Eu vi, Mendo, esta noute antevi a nossa felicidade futura.—Era um paraiso. (Ouve-se uma musica de orgão e um coro, muito ao longe até ao fim da scena.) Um campo todo de flores maravilhosas, com um perfume inebriante; um lago coberto de diamantes, de uma serenidade e formosura sem igual no mundo; sobre o lago nuvens, em que o ouro e a purpura se misturavam com a luz rosada da mais bella aurora; e do ceu resplandecente, scintilante, baixavam, fluctuando brandamente, anjos que vinham pousar sobre as graciosas nuvens. Depois, vozes sobrenaturais as vozes dos anjos em divino coro, pediam a Deus pela nossa felicidade; e o meu e o teu nome, Mendo, subiam assim até ao throno do Eterno.{D2. Pg. 86}
Foi um sonho, e o sonho até se póde realisar.
Não foi sonho, Mendo, foi uma visão celeste, uma divina promessa. Naquella hora tudo eram puras alegrias diante de mim; e no meu coração tudo eram orações fervorosas, e ardentes esperanças.
Que esperanças podemos nós ter ainda?
Deus quer a nossa união, apesar dos agoiros, das negras paixões, dos crimes, das vinganças dos homens.—Na terra não podemos ser unidos, sel-o-hemos no ceu!
E quando, quando, minha Violante, terão fim estas angustias do existir? Violante, amo-te; nesta hora amo-te mais do que nunca te amei. E é agora, que nos vamos separar para sempre! Esta deve ser a unica vez, que nos vejamos; estas devem ser as nossas ultimas palavras de amor. Amo-te, amo-te, Violante.
O amor mata, aqui na terra; mas no ceu é a eterna alegria.—Mendo, deixa-me repetir tambem essas palavras, em que se resume a minha vida toda!—Amo-te, amo-te.
(Aparecendo á porta do fundo.) Os cavalleiros do templo já estão reunidos na igreja.
Violante!
Mendo, adeus!—Adeus para sempre!{D2. Pg. 87} (Cae nos braços de D. Mendo beija-o, e sae correndo pela porta da direita.) (Ouve-se depois a voz de Violante, já fóra de scena repetindo, « Adeus!.... adeus!»)—(A musica do orgão acaba logo depois.)
D. Mendo e Fr. Bermudo
(Detendo D. Mendo.) Deixa-a ir só.
Quero vel-a... Não me posso separar della ainda.
De que te serve prolongar por mais tempo esta angustia? O momento mais doloroso passou para ella, já agora: e daqui a um instante vir-te-hão buscar os templarios.
Mas deixal-a assim!—Bermudo, aquelle adeus foi um como grito de extrema dôr, que me aterrou. Naquelle sonho de felicidade, naquellas esperanças de alegria de Violante, havia não sei o quê de sinistro, como a morte. Naquelle espirito angelico ha um pensamento de crime, ha naquella alma a presciencia do remorso.
Deixa-a morrer com o seu sonho do ceu.
Morrer!
A morte é o termo do padecer.
Que dizes?{D2. Pg. 88}
A alma de Violante é já de um outro mundo, o seu corpo em breve será dos elementos.
Meu Deus! Que quer isso dizer? Não posso comprehender.
Uma paixão destruiu nella a vida do espirito; e a morte porá em breve termo à vida corporal.
Pois ella, Violante ousará attentar contra a propria vida?
A infeliz não tem força, não tem animo para supportar o seu martyrio. Ella vê na morte só a paz, e a passagem para um mundo melhor; por que na sua alma pura, nada lhe faz receiar o eterno julgamento.
Violante morrer!—E como hade ella morrer?
Hontem, Mendo, a desventurada Violante veio aqui ao convento, e pediu-me, pelo que para mim existe de mais sagrado, que lhe desse um veneno, para ella não padecer longas dores na hora do passamento.
E tu déste-lhe o veneno?
Dei!.,.
Tu!—a vingança levou-te a um tal crime.—Vingaste-te sobre uma innocente...{D2. Pg. 89}
A vingança... esqueci-a por ella. Tu bem o sabes, Mendo.
O ciume...
Um amor como este meu, é como á immensidade do deserto; as tempestades atravessam-no rugindo medonhas e ferozes, os vulcões ardentes passam revolvendo as areias, cavando abysmos, cobrindo com montanhas os restos de antigas cidades; mas toda essa desordem tremenda perde-se, torna-se pequena n'aquelles espaços infinitos; e depois fica tudo arido, morto, immobil como d'antes.—Oh! o ciume foi como a tormenta do deserto, passou atravez da immensidade d'este amor, revolvendo-me o mais intimo do coração, sem que eu mesmo possa ver já as ruínas que deixou após si. Não foi o ciume, foi a piedade, foi uma grande dor de coração, um puro e sancto dó d'esse padecer, que a consumia.
Dó! Piedade! E matas-te-la! Corre a salva-la, se ainda é tempo.—Não vás... vou eu.
(Detendo-o.) Não, não vás. É uma crueldade. E, de mais, é tarde: agora já ella terá tomado o inexoravel veneno.
E se ella está envenenada não haverá meio de a salvar?
Quando a morte penetra o sanctuario da vida,{D2. Pg. 90} quando estende o poder até sobre a luz do espirito, só um milagre pode vencer o seu poder.
Palavras... palavras! És um louco, Bermudo, sem coração nem consciencia. Váe, váe já, e salva-a. Essas palavras insensatas que dizes, não te podem justificar. És um assassino, Bermudo, se a não salvas. (A D. Gontrade, que apparece á porta, pallida e cadaverica.)—Oh! Vinde... vinde, minha mãi... vinde tambem pedir por ella, a este homem, Violante morrerá se elle a não salva.
Os mesmos e D. Gontrade
Salva-a!... e a elle tambem! salva-os a ambos fr. Bermudo. É preciso perdoar tudo, perdoar a todos, para que Deus nos perdoe tambem.
Vós perdoaes, senhora, como eu perdoei já; e não deveis pedir a vida de Violante, porque a morte é para ella o descanço; a eterna paz.
Deixal-a morrer!... Pois que tem ella?! Quem a quer matar?!
Foi elle, esse homem cruel, esse homem sem coração... foi elle que lhe deu o veneno... e que a não quer salvar agora.
Ide, meu irm... ide, homem; salvae Violante, se ainda é tempo.—Sou eu que vol-o peço n'esta minha ultima hora (Caindo de joelhos.) Salvae-a,{D2. Pg. 91} e uni-os um ao outro, estes dois innocentes, que se amam... Que seja tudo esquecido, porque elle, lá do tumulo, já perdoou. Vou morrer... Fazei Mendo e Violante felizes. Salva-os pela minha alma! Salvae-os para que Deus, me perdoe.
É tarde. A esta hora talvez, Violante não exista já...—Disseram-no os astros, e os astros não mentem... (Sáe.)
D. Mendo, e D. Gontrade
Meu Deus, piedade!... Salvae-a, senhor!
Salvae-a!... (Vae para sair.) Oh! Quero vêl-a... Não quero que morra sem que eu morra tambem com ella!
(Levantando-se.) Meu filho, ouvi... escuta-me, meu querido Mendo, não me deixes agora... não me deixes aqui só: Sinto que vou morrer, e tenho necessidade de ti... quero beijar-te ainda como quando tu me julgavas innocente.
(Segurando-a nos braços') Que tendes, minha pobre mãi?! Como estaes palida!... Que martyrio é este meu, Senhor.
Não é nada... é a morte... é o descanço se Deus me perdoar. Meu filho, meu filho, eu cometti um grande crime, mas se tu m'o perdoares,{D2. Pg. 92} Deus perdoar-me-ha tambem. Perdoa, filho, perdoa a tua mãi, que vai morrer!
Vós tambem minha mãi, ides deixar-me! Todos me abandonam!... fico só, só com esta dor no mundo!
Ai, Mendo, se eu visse cumprido antes de expirar o sonho do meu delirio! Que sonho tão bello, meu Deus! Que vizão consoladora!... Vi-o, a elle, a teu pai, cercado das glorias infinitas do céo... Não ameaçava já, abençoava... não me olhava com colera, sorria-se com brandura e piedade! Senti uma alegria infinita derramar-se no meu espirito... Accompanhava-o um anjo; e disse-me estas palavras divinas: «Perdoa, como eu te perdôo... Este anjo, é o anjo da guarda do nosso filho... faz feliz o nosso amado filho, o nosso querido Mendo.»
E o anjo...
O anjo era Violante. Violante á o teu anjo da guarda!
E o meu anjo deixou-me... para sempre me abandonou o meu anjo da guarda!
Na terra, talvez; no céu, não te abandonará de certo.
Vou... Deixai-me-ir, minha mãi. Vou procurar Violante.
E deixas-me aqui morrer só!?{D2. Pg. 93}
Vamos rezar por ella, ao menos—pedir ao céu que nol-a salva. (Cáem ambos de joelhos.)
(Levantando as mãos ao céu.) É esta a minha ultima oração... que ao menos esta seja ouvida por vós, Senhor!
Virgem Maria, explendor de eterna gloria, luz que faz desaparecer todas as trevas do coração, dá azas a minha alma para subir ao teu throno, a pedir-te vida, vida para ella... Salvae-a, Senhora Nossa! (Ouve-se um coro religioso entoando o Dies irae) Oh! São os canticos da morte, que respondem a esta nossa oração, minha mãi!
São tremendas aquellas palavras; são palavras que gelam de pavor a quem vai morrer.
Os mesmos, os templarios e depois D. Violante, e Fr. Bermudo
É a hora, cavalleiro D. Mendo Paes de vos unirdes á Santa Ordem do Templo, para nos ajudar a defender, e a fazer adorar por toda a terra a Cruz do Redemptor.—O mestre dos templarios espera por vós.
Esperae; esperae!... ainda não!., ainda não!
(Fóra.) Mendo! Mendo!{D2. Pg. 94}
Violante!... viva! ainda viva!
(Caindo nos braços de D. Mendo.) Mendo, aqui estou... sou tua... já sei tudo! Mendo... estou viva para te amar! (Mostrando fr. Bermudo.) Salvou-me elle.
Agora já posso morrer.—Filho... filhos, adeus.
(Cáe por terra Mendo e Violante correm a D. Gontrade.—Os templarios aproximam-se.)
Serão felizes, elles... Só para mim os astros não mentiram.
Fim do 5.º acto e do drama.{D2. Pg. 95}
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End of the Project Gutenberg EBook of Theatro de João d'Andrade Corvo - I, by João de Andrade Corvo *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK THEATRO DE JOAO D'ANDRADE CORVO - I *** ***** This file should be named 28414-h.htm or 28414-h.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/2/8/4/1/28414/ Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at https://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit https://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: https://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.