Project Gutenberg's O Assassino de Macario, by Camilo Castelo Branco This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: O Assassino de Macario Comedia em tres actos Author: Camilo Castelo Branco Release Date: October 13, 2008 [EBook #26913] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O ASSASSINO DE MACARIO *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.)
O ASSASSINO DE MACARIO
Porto--Imprensa Moderna
CAMILLO CASTELLO BRANCO
O ASSASSINO DE MACARIO
COMEDIA EM TRES ACTOS
VERSÃO LIVRE
Expressamente coordenada para a festa artistica do ACTOR DIAS
2.ª EDIÇÃO
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, Editores
1903
Propriedade absoluta dos editores
Reproducção interdicta em todos os paizes
PERSONAGENS
Barnabé.
Liborio.
Itelvina.
Sebastiana.
A scena é no Porto.
Esta comedia não póde ser representada sem auctorisação dos editores, para quem ficam reservados todos os direitos.
(Entra pela esquerda, trajo da manhan, traz na mão uma chocolateira e toalha. Chama:) Sebastiana!... Isto é que foi dormir alarvemente! (Olhando para o relogio) Já dez horas... e eu sem fazer a barba! (chamando) Sebastiana! Esta creada é uma calaceira!... Não ha d'outras... Tive um sonho... Isto de sonhos é uma tolice... Sonhei que estava[8] pescando á cana... n'uma cazinha campestre, com transparentes verdes... e um repucho!... Ah! o meu sonho d'oiro!... Logo que eu cazar a filha... Um repuxo... (chamando) Sebastiana! Com effeito! (Vai á porta do fundo) Sebastiana! Sebas...
(entrando pelo fundo) Aqui estou, senhor!
Não me tinhas ouvido?
Perfeitamente. O senhor chamou-me quatro vezes.
Então porque não vieste logo?
Estava a almoçar. Acho que o senhor não pretende que os creados não comam.
Não...[9]
Além d'isso, eu sei que o senhor é pachorrento, um paz d'alma...
Abusas um pouco do meu temperamento.
Está enganado... eu pelo senhor era capaz de me atirar ao lume...
Pois bem, vai atirar ao lume esta chocolateira... Quero barbear-me. (Dá-lh'a)
Dentro de 15 minutos aqui estou. (Vai sahir).
(chamando) Olha, Sebastiana...
(tornando) Não me mande fazer duas coisas ao mesmo tempo que me atrapalha, ouviu?[10]
(á parte) É uma creada como se quer! Boa bisca... (alto) Olha lá... Noto que vae na caza um socêgo extraordinario! Minha filha estará doente?
Não senhor; sahiu de manhan cedo.
Ah! é isso? (Senta-se no canapé).
E, na verdade, a menina faz um estardalhaço! credo!... E é de pasmar como o snr., tão manso, tão socegado, fez uma filha tão...
Tão estapafurdia, pódes dizer...
É isso, estapafurdia... é uma trovoada... credo!
Tu que queres?... A natureza tem desconcertos... Olha, Sebastiana, eu nem sempre vivi dos meus rendimentos.[11]
Pois sim, sim...
Tive uma fabrica de ligas em Fradellos.
De ligas? ora vejam...
Fazia pouco negocio... Resolvi ir para o Mexico, por que n'um paiz, n'um paiz quente, bem percebes, mostra-se mais a barriga das pernas... Fundei o meu estabelecimento no Mexico, e grangeei logo toda a freguezia das boas pernas do paiz... com sáias curtas.
Olha que pechincha!...
Vais vêr... um par das taes pernas... duas buxas fizeram-me uma impressão profunda... Todas as profissoens tem os seus perigos... Esposei...[12]
As taes buxas?
Sim... Ella chamava-se Dolores. Sete mezes depois, tinha uma filha...
Sete mezes só? ora essa!...
No Mexico a vegetação cresce muito depressa, é o que é; e isso mesmo te explica o genio impaciente da minha Itelvina... Ella não quiz esperar que se completassem os nove mezes... sahiu...
Não admira, não...
E aqui tens tu, Sebastiana, como eu, um portuguez de lei, sou pae d'uma mexicana...
Agora é que eu percebo a differença dos dois genios.[13]
O ceo do Mexico! Os costumes d'esse clima de fogo! Minha filha tem nas veias o meu sangue; mas... mais quente... ferve-lhe mais... em fim, tem uma temperatura mais alta...
Acho que sim... intendo.
Ha-de haver um anno que passei o negocio e vim para a patria... Estava rico... primeira felicidade; estava viuvo, segunda feli... Emfim, como não nos davamos bem... segunda felicidade, está dito.
Então não se davam bem...
Quero dizer... a senhora Barnabé... era muito fogosa... muito atiradiça... e chamava-me... maricas.
Credo![14]
Em fim ella tinha desculpa... Eu bem me conheço... Mesmo hoje, com minha filha, sou uma lesma, um fracalhão... Ahi está ella a querer casar com o valdevinos do Macario.
Mas não basta querer ella.
Assim é; mas ella quer á fina força e eu não quero; a final, quem hade vencer é ella, que é a forte, e casará! São favas contadas. Era o mesmo com minha mulher. Dizia-lhe eu «quero»; respondia-me ella «não quero», e eu... moita... nem palavra.
Então estavam sempre de harmonia?
Está claro. (Rumor fóra)
(indo á janella) Que será isto?[15]
Algum choque do americano com o Rippert.
Nada, parece desordem... Tanta gente defronte da porta...
Da nossa?
Sim, snr. Quer que eu vá saber o que é?
Não... que me importa a mim?... Olha se me aqueces a agua... anda.
Ólá!... és tu?
Sim, sou eu. Bom dia.[16]
Tu que tens?
Estou furiosa! (Passa para a direita.)
D'onde vens?
De pregar uma bofetada n'um sujeito.
Fizeste isso?
N'um atrevido...
Talvez imaginasses...
Qual imaginasse! um grosseirão que ousou dizer-me cara a cara: «a menina é encantadora.»
E bateste-lhe por isso? Que farias tu se elle te chamasse estafermo?[17]
O seu sangue frio, meu pae, quando sou insultada! Castiguei-o, e espero que a scena se não repita.
De te chamar encantadora?... Tambem me parece que o homem deve ter modificado a sua opinião a teu respeito... (A Sebastiana) Que fazes tu ahi? a minha agua quente?
Lá vou já, snr. Barnabé. (Á parte) Muito atolambada é esta menina! (Sahe pelo fundo).
(depondo o chapeu e o chaile, vae sentar-se ao piano e canta) Trai la ri, trai la ri, trai la ró.
Isso é um bota a baixo! Agora é o piano que leva a sua conta...[18]
«Na primavera da vida
Ambos e dois muito amigos
Suspiravam por um ninho,
Por um ninho entre os trigos.»
Que é isso que tu cantas?
Uma cançoneta moderna, que se chama: Um ninho entre os trigos. (Canta):
E de braço dado juntos
Ao repontar da manhan
Iam fazer o seu ninho
Nos trigos de Campanhan.
É mais natural que fôsse nas arvores... Os passaros em geral preferem...
Mas não se trata de passaros. (Canta):
E depois elle cantava
Pousado nos ramos novos,
E ella aquecia, cantando
No seu ninho os caros ovos.[19]
Ah! então não é de passaros que se trata? Lá me parecia que dois passaros de braço dado por Campanhan...
É uma menina e um rapaz.
(pegando na cançoneta com arremesso). Basta! Deixa vêr. (Lê alto as tres quadras que ella cantou). E chama a isto um ninho o tratante do cançoneteiro! Quem diabo fez esta coisa?
Foi um poeta inspirado. Dê-me cá a muzica, ande!
Empresto-t'a para a estudares, de tarde, quando eu estiver a dormir a sésta... (Á parte). Mandem lá ensinar piano ás raparigas n'uma terra em que os poetas inspirados dizem ás meninas que se fazem ninhos nos trigos de Campanhan!... e que se aquecem os ovos... O Porto está peor que o Mexico a respeito de ovos e de ninhos...[20]
(entrando pelo fundo). Ainda havia agua quente. Ella aqui está (Dá-lhe a chocolateira).
Bem, vou para o meu quarto (Mudando de ideia). Mas, se estiveres quieta... Um pae póde escanhoar-se na presença da filha (Arranja os utensilios, e remeche o pincel na vasilha do sabonete).
(a Sebastiana) Veio carta para mim?... de Braga?
Não, minha senhora, o carteiro passou ha muito. (Sahe pela porta do fundo)
(comsigo mesma) É espantoso! Ha trez dias que Macario foi para Braga, e nada de noticias! Se eu não tivesse inteira confiança no seu amor... Talvez uma catastrophe! Acontecem tantas desgraças nos caminhos de ferro!... (Vae agitadamente para o pae que lhe voltou as costas e se está barbeando) Meu pae! (com intimativa)[21]
Que é? cuidado, que por pouco me não cortei... Que temos?
Acha isto natural?
Natural, o quê?
Trez dias de auzencia sem me escrever?
Ah! sim, o Macario? (Á parte) Bem me importa a mim isso... (alto) Se elle foi buscar os papeis a Braga, é preciso dar-lhe tempo. (Torna a escanhoar-se)
(passeando) Dar-lhe tempo, dar-lhe tempo! Eu não exijo que elle volte; mas que me escreva; não se está assim trez dias... a fazer o quê?... que difficuldades encontrou?
Não andes assim n'esse passo que me incommodas. Fazes tremer o sobrado.[22]
O pae não sabe o que é amor!
Soube-o primeiro que tu, e dou-te a minha palavra que depois que a gente sabe o que isso é, e pensa a sangue frio... não vale um caracol o amor... Tu o saberás...
Ha tres mezes que conheço Macario, e a toda a hora maldigo as formalidades portuguezas, e pergunto de que servem para a gente se casar, papeis, banhos, tabellião, padre, sacristão...
Ha pessoas que dispensam tudo isso... mas (com energia) fazem mal... fazem muito mal... Sem tabellião, e banhos, e padre e sacristão não ha honra.
Finalmente, logo que Macario chegar com os papeis, não haverá impedimentos...
Isso lá de impedimentos... veremos.[23]
(derrubando uma cadeira, e indo direita ao pae) Haverá alguns? diga...
(cortando-se) Cá está um... vês tu?
Um impedimento?
Um golpe de navalha... estou acutilado!
(estancando-lhe o sangue com o lenço) Deixe vêr... Isto não é nada.
Arde-me... e bastante...
Vae passar.
Falla-me, se queres, mas lá de longe... Eu só de longe é que ouço bem.[24]
(afastando-se e levantando a cadeira) Faço-lhe a vontade; mas o pae fallou de um impedimento... desejo conhecêl-o.
É o meu consentimento.
O seu consentimento?
Está claro; tu não pódes casar sem eu consentir... A lei é positiva.
Que arrelia! Isso quer dizer que, se o pae não ama Macario, tambem eu não posso amál-o...
Lá tu amál-o pódes... mas não basta...
Não posso casar com elle, se o pae o não amar?...
Não.[25]
As leis portuguezas dizem isso? Existem absurdos taes n'um povo livre?
(limpando a navalha e pondo-a sobre o contador) Tal e qual, minha filha. Ora agora, quanto a Macario...
(passando para a esquerda) Meu pae, eu amo Macario!
Elle não tem chêta.
Amo Macario!
Passa a vida nos bilhares e nas cervejarias.
Mas eu amo-o.
Serás desgraçada com elle.[26]
Acabemos com isto. Amo Macario!
«Amo Macario, amo Macario!» Estás-me cantando o 1.º acto da Favorita. «Eu o amo, eu o amo!»
Dá ou não dá o consentimento?
Não.
Não? (Pega da navalha) O pae é implacavel, hein?
Que é o que ella tem na mão? Ceus! a minha navalha!
(caminhando e brandindo a navalha e o pae a seguil-a) Trato de me evadir ás leis infames d'este paiz. Suicido-me.
Larga a navalha.[27]
Ultima vez: consente?
Consinto: casa com elle.
(largando a navalha e abraçando-o) Obrigada, meu pae, obrigada!
Agora, asfixias-me... (Passa para a direita, levanta a navalha e colloca-a sobre o contador) Cruzes!
Mas o silencio d'elle assusta-me, meu pae! Trez dias sem noticias! Vou escrever a Macario; e, se me não responder, amanhan parto para Braga. Se lhe tivesse acontecido algum revez! (A Sebastiana, que entra pelo fundo) Sebastiana, não estou em casa para ninguem, absolutamente para ninguem (Entra pela direita)
Sou o pae d'esta pombinha... É um anjo... Se eu me vejo livre d'esta ardente creatura do Mexico... Sebastiana, dá-me o casaco e o chapéo.[28]
Sim, senhor. (Sahe pela esquerda)
(só) Deixál-a casar com o Macario! O que eu quero, sobre tudo, é paz e socego... O casamento favorece os meus projectos... Fallaram-me d'uma quinta que se vende em S. Mamede de Infesta. O dono mora perto d'aqui; vou tratar com elle; e, se não fôr muito cara, o meu sonho d'esta noite realisa-se... O repuxo! Ah! o repuxo!
(entrando com o casaco e o chapeo) Aqui estão as coisas.
(despindo o rob-de-chambre) Obrigado... Ajuda-me... (Vestindo-se) Irei viver sosinho em paz e socego.
O senhor vem jantar?
Sim, mas ha de ser tarde. (Sahe pelo fundo repetindo) Em paz e socego...[29]
(só) Muito bom sujeito! (arruma); mas a filha... Ah! tenho pena do tal Macario, se casar com ella! Credo! se eu fôsse homem, e topasse uma creatura assim... ó senhores!... Emfim, isto de homens gostam assim das mulheres que puxem por elles... Mas esta ida a Braga... Quem sabe se o tal Macario... an, an... (Toque fóra) Quem sabe se é elle? (Liborio entra pelo fundo)
Ai! não é elle!
Não é elle: sou eu.
O senhor que quer?
A snr.ª D. Itelvina Barnabé, uma mexicana de raça portugueza...[30]
É aqui; mas...
Ella sahiu? É o que eu quero. (Assenta-se, e apresenta um aspecto risonho) Vou-me ensaiar.
Mas a senhora está em casa.
(erguendo-se de impeto, e tornando-se grave) Recôlho o meu sorriso; n'esse caso vae dizer a tua ama...
A senhora está a escrever, e prohibiu-me de a interromper.
(tornando-se a sentar risonho) Muito bem... vou-me ensaiar.
(á parte) A fallar a verdade, a menina é tão exquisita que, se eu a não aviso, é capaz de se escamar. (alto) O senhor como se chama?
Como me chamo?[31]
Sim... vou avisar a senhora. Quem direi que a procura?
Annuncia-lhe... um desgraçado! (passa para a esquerda).
Um desgraçado?!
Não... (á parte) Seria parlapatice de mais...
Então que decide?
A tua ama é nervosa?
O senhor que diz? olha que pergunta!
Deve ser nervosa... Olha bem para mim... Vês esta cara melancolica? vês? pois vae dizer á menina Itelvina que está aqui um sujeito com cara de quem chorou...[32]
Como? o senhor quer que eu diga...
Não, outra coisa... espera...
O senhor não pense que eu vou agora incommodar a menina para lhe fazer o seu retrato.
Tens rasão; não a incommodes... Esperarei... convem-me esperar...
(á parte) Tem grande têlha o homem!
Como te chamas?
Para que o quer saber?
Para quê? É para não estar a chamar-te creada; mas, tens rasão... Que me importa a[33] mim? Eu queria chamar-te Mariquinhas ou Theresinha... Que lindos olhos tu tens, e que cinta!... (Cinge-a pela cintura).
Está bonita a chalaça!... foi para isto que veio cá?
Não. Tu me impões o cumprimento de um dever. Obrigado, rapariga, obrigado!
(á parte) Elle é doido; mas aparelha bem com a minha ama... Cá se avenham, que eu vou para a cosinha. (Sahe pelo fundo, levando o rob-de-chambre de Barnabé, e os utensilios de barbear.)
(só, arrumando á esquerda o chapeu e a bengala) Eis-me a braços, com a minha missão!... Aquelle diabo do Macario!... Acabou-se... Não ha remedio... Hontem á noite, entrei no café Lisbonense, e estava lá o Macario a apostar ao bilhar. Assim que me avistou,[34] veio direito a mim, e disse-me: «Liborio, és meu amigo?» Eu conhecia-o de ter estado com elle no collegio do Six, onde tinhamos rilhado de parceiros algumas raizes de latinidade. Respondi-lhe: «Sim, sou teu amigo para a vida e para a morte.»--«Para a morte? exclamou elle. É o que eu exijo da tua amizade. Se me amas, vaes matar-me!» E em poucas palavras contou-me os seus amores com uma mexicana a quem promettera casamento. «Esta neta de Montezuma, disse elle, não pega como uma obreia--agarra-se á gente como colla forte: é um betume. Quer por força pregar comigo na egreja. Se eu não cazar com ella, mata-me; e eu prefiro antes morrer ás tuas mãos que ás d'ella.» Fallou-me então d'uma fantastica sahida para Braga, e encarregou-me da missão que venho cumprir... Confésso que não me encarregaria d'isto sem umas certas intençoens... O retrato que elle me fez d'essa Itelvina realisa os meus ideaes. Uma rapariga selvagem é ave rara no Porto!... Uma mulher que tem nas veias sangue dos Incas!... alto lá com ella! Está no meu gosto. Resolvi, por tanto, relacionar-me com a pequena; e, se me agradar, tratarei de lhe dar algum alivio, e passo a emprehender a conquista do Mexico. (Olha para o lado direito) Abre-se uma porta... é talvez a pequena... Agora é que são ellas... Firme!...[35]
(com uma carta na mão) Está feita a carta... já p'ro correio... (avistando Liborio) Um homem!...
(cumprimentando) Minha senhora... (á parte) Fatia!... rica natureza!
O senhor quem procura?
A snr.ª D. Itelvina Barnabé.
Sou eu.
(sorrindo) Minha senhora... (á parte) trabalha-se bem no Mexico... (alto) Venho encarregado de lhe transmittir uma importante noticia...[36]
Noticia?
(á parte) Circumspecção...
Queira dizer (apontando-lhe uma cadeira e sentando-se)
(pegando de uma cadeira do fundo á esquerda e sentando-se) (á parte) Estou atrapalhado... (alto) Minha senhora, acabo de chegar de Braga.
(erguendo-se, e elle tambem) De Braga?
(passando para a direita) (á parte) Parece que o cavaco tem de ser de pé. (Alto)... Venho de Braga, onde estive com Macario...
O senhor é amigo d'elle?
Sim... isto é... sim... oh! certamente... amigo intimo...[37]
(com vehemencia) Por que não está elle aqui ao pé de mim como prometteu e jurou? Por que me não escreve? porque é? diga-me o senhor por que é?
(á parte) Que bonita ella é zangada!
O senhor não responde?
Responderei. (á parte) Circumspecção! (alto) Macario ficou em Braga... e encarregou-me de communicar a V. Exc.ª as rasoens que o prendem lá.
Mas acabe com isso... vamos direitos á questão... Nada de delongas...
(á parte) Tambem não é feia na impaciencia!... (alto) Minha senhora, o imprevisto é o machinista da existencia... O acaso arranja[38] uns scenarios, umas tramoias que parecem de peça magica...
Que mais?
(á parte) Não vamos logo ás do cabo. (alto) Ah! minha senhora... ser joven, bello, amado de uma mulher... isso não é rasão para impedir que um máu destino... pelo contrario é peor...
Ó senhor! por piedade! Acabe...
Macario disse a V. Ex.ª, creio eu, que ia a Braga buscar uns papeis...
E mentiu-me?
Quanto ao fim da viagem, mentiu. Ninguem hoje vae a Braga senão por dous motivos.
Quaes?[39]
Ou se vae ao Bom Jesus vêr os judeus e comer frigideiras, ou terçar no campo da honra dois floretes, desde que os duelos no Porto, por muito repetidos, têm a policia n'uma constante vigilancia.
Um duelo!?
Um conflicto de honra...
Elle foi bater-se? Ficou ferido?
Minha senhora...
Ligeiramente ferido, sim? quasi nada? Oh! diga-me que não é nada!
Minha senhora... Macario... ah!... não posso... Se V. Ex.ª soubesse...[40]
Ó ceus!... que foi?...
(á parte) Chegou o momento.
Macario?...
Macario...
Morto! (Liborio está um momento silencioso; depois, ampara a cabeça com as mãos).
(expedindo um enorme grito) Ah!
Minha senhora...
Morto! assassinado... elle!... ah! (Roda sobre si mesma duas vezes e vae desmaiar no canapé).[41]
Hein! ella desmaia!... ora esta! Não a julgava capaz d'esta tolice! (vae junto d'ella) Menina... Acho que chamo alguem... Mas que historietas se vão arranjar com este caso!... Menina, peço-lhe que recupere os sentidos... Se eu a despertasse... Mas é preciso bolir-lhe nos colchetes... Não, não me atrevo a fazer tanto... O coração bate-lhe... Estou mais socegado... É gentil!... é mais que gentil, é formosa! Isto é bom a valer!... E aquelle parvo do Macario a desdenhar... Ella está ganhando côres... já lhe tremem as azas do nariz... e pestaneja. Volta á vida... Se eu me safasse agora... (Vae a querer sahir e retrocede) Não: já agora fico, succeda o que succeder.
Onde estou?
Menina...
Quem me falla? quem é o senhor? (encarando-o) ah!
Por quem é, socegue![42]
Esta voz... esta cruel voz...
Que é?
Recordo-me... Macario, o meu noivo, a minha alma... ah! ah! ah! (recahe sobre o canapé e chora).
(á parte) Palavra, que me mordem remorsos.... Se eu previsse... Acabou-se... Vou-lhe dizer tudo... (caminha para ella; mas reconsidera) É demais atormentar assim esta mulher com mentiras... Diabo! como ella chora... (avisinha-se) Minha senhora, então, então...
(erguendo-se energicamente, limpando as lagrimas, e passando para a direita) Basta de fraqueza! Nada mais de prantos! Um scelerado matou Macario... e eu aqui a carpir-me em vez de o vingar! (Vae a Liborio) O senhor foi testemunha do duelo?
Sem duvida... isto é... sim... fui testemunha (com dôr) Fiz quanto podia; mas...[43]
Sabe qual foi a causa do duelo?
A causa? ora, se sei... pois não sei?... (á parte) Ó diabo!... (alto) pois não heide saber a causa? não sei eu outra coisa...
Então diga lá qual foi?
Uma questão de carambolas... A paixão do Macario... bem sabe... é o bilhar... Por causa de uma carambola...
De uma carambola?
Sim... o parceiro tinha descolado a bola.
Está bem... não quero saber d'isso... Logo que o motivo não foi outra mulher, o resto não me importa. Como se chama o adversario?[44]
O adversario?
O nome d'elle?
Então quer que eu lh'o diga...
O nome do assassino. (Liborio hesita) Vamos!
Ah! sim o nome do assa... Ora espere... Mas é que eu fui padrinho do Macario... e não conheço o outro...
Ora essa! um padrinho deve conhecer os dois.
Tem razão; é natural que m'o dissessem; mas a commoção...
(á parte) O homem está atrapalhadissimo! (alto) Mas o senhor quem é? como se chama?[45]
Liborio, minha senhora, Arthur Liborio; profissão, filho familia que devora a legitima paterna; mas tenho muitos tios ricos...
Pois então, senhor Liborio, meu presado senhor Liborio, diga-me o nome...
De quem?
Do assassino de Macario.
Palavra d'honra que não sei...
O senhor mente!
Ó minha senhora...
Não é possivel...[46]
Antes isso... que é menos indelicado...
Está bom: eu saberei o nome. Onde foi que se bateram?
Onde foi?
Tambem não sabe?
Não sei eu outra coisa! mas essas miudezas... (á parte) ella embrulha-me!
(á parte) Outra vez atrapalhado!
Foi n'uma carvalheira... A snr.ª D. Etelvina conhece Braga?
Nada.[47]
(á parte) Ainda bem! (alto) Braga tem a figura d'um enorme bacalhau da Noruega, e tem 3 portas. Nós sahimos pela estrada de Guimaraens. Foi ao pé da Falperra. Carregando á mão direita topa-se uma azenha, depois sobe-se um pedaço de monte, toma-se para a esquerda, e entra-se n'uma mata virgem... Foi ahi que se bateram.
Não preciso mais nada. A que horas se sahe para Braga?
Ha tres comboios a escolher.
Iremos no primeiro.
Iremos?!
Duvída acompanhar-me?
Eu?[48]
Ir mostrar-me a fatal mata virgem, e auxiliar-me nas minhas pesquizas até descobrir o assassino de Macario?
Mas, minha senhora...
Não vae?
Irei; mas...
Vou escrever a meu pae, preparar a malêta e vamos... (vae para a direita)
Sosinhos?
Com meu pae... Jura que me espera?
Faça favor de reflectir... minha senhora...
Jura?[49]
Sobre os manes de Macario! juro!
Obrigada! venho já. Oh! sim! a Braga, no expresso! (sahe velozmente pela direita).
(só, cobrindo-se) Toca a safar! É uma canalhice faltar ao juramento... mas basta de asneiras... Onde esta o meu chapeo? A rapariga é bonita, é adoravel; mas leval-a a Braga e mais o pae, e continuar esta tramoia absurda...--onde poria eu o chapeo?--que eu vim representar no seio d'esta familia (Põe a mão na cabeça) Cá está o chapeo... Por aqui me esgueiro... (Vae a sahir pelo fundo, e encontra Barnabé que entra).
(vendo Liborio) Olha o Liborio!... (á parte) que veio aqui fazer este typo?
O meu parceiro do quino!...[50]
O grande pandego por aqui?
(á parte) E eu que ainda hontem estive a jogar com elle... Isto vae transtornar a patranha...
Então que feliz acaso o trouxe aqui a minha casa?
A sua caza?... É celebre coisa! Eu não sabia que o amigo Barnabé era o pae da menina... Muito gôsto em o conhecer...
Ainda me não explicou o mais importante.
Acabo de ter o prazer de communicar a sua filha uma tristissima noticia...
Sim? então que foi?[51]
(querendo sahir) Não... Já bastará... dispenso o bis... Ella cá lh'o contará...
(sustendo-o) Snr. Liborio, eu sou pae... ouviu?
(á parte) A pequena é encantadora, e não será máo sondar o pae... (alto) O senhor conhece o Macario?
Muito... de mais.
Vim annunciar-lhe que elle morreu.
(com jubilo) Que me diz?
(admirado) Gosta?
(reconsiderando-se) Não... pobre moço... Sem duvida, deploro esse caso palpitante! mas em fim (alegremente) faz-me conta.[52]
Sim? Faz-lhe conta?
É o que eu lhe digo. Elle ia casar com a pequena... Consenti com muito custo. Não gostava do homem, eu; e persuado-me que minha filha se daria mal com elle. Por tanto, como individuo, lamento-o; como pae, exulto.
(á parte) Isto vae bem, vae bem... mas então é inutil que eu o convença de que... (alto) Snr. Barnabé... (Leva-o para a esquerda) Psiu... Macario está de perfeita saude.
O Macario que morreu?
Não é isso... não morreu...
Isso máo é!...
Ahi vae o inigma em duas palavras. Macario fez á sua filha juramentos que não quer cumprir, percebe?[53]
Diga o resto.
E para fugir á vingança, pediu-me que viesse dar parte da sua morte.
É um caso bonito e extraordinario, esse...
Eu fiz um relatorio em regra... um duelo em Braga, etc., etc., etc.
Ella havia de fazer ahi o diabo!... Ella não lhe bateu, hein?
Não; mas soluçou, desmaiou, escabujou... Oh! soberba creatura na sua angustia!
Está alli uma linda viuva, não acha?
A final quer que eu vá com ella a Braga.[54]
O senhor?
Eu e mais o senhor. Quer que vamos os trez.
Então desconfia da pêta?
Não, senhor. Quer ir vingar a morte do noivo.
Toma!
E exige que eu lhe diga o nome do assassino; e como até esta data o unico assassino de Macario sou eu...
(á parte) Que disse elle?[55]
Agora, já o meu amigo entende a minha atrapalhação...
(á parte) A sua atrapalhação!...
Porque lhe não disse um nome qualquer?
Não me occorreu essa idéa...
(á parte) Que mysterio é este?
Já vê em que entalas eu me acho... A cada instante, quasi que me estendia... Que colicas eu rapei! Eu não queria de modo algum que ella soubesse que...
(á parte) Que horrores eu estou adivinhando!
Soubesse o quê?[56]
Jogo franco. Macario fallou-me de sua filha n'uns termos que espicassaram a minha curiosidade...
Com effeito... espicassaram-no os termos...
Meu amigo, sympathiso com esta menina original...
(á parte) Hein?
É o que lhe digo... Amo as plantas exoticas... Gosto d'estes licores capitosos de fabrica estrangeira, e regeito os charopes amelaçados da fabrica nacional.
Em summa, o senhor gosta de minha filha...
Deveras.
(á parte) Elle ama-me!... que horror![57]
Querido Liborio! (á parte) Elle é rico... (alto) O seu pedido faz-me muita honra... mas...
Recusa?
Acceito. (Dão-se as mãos).
(á parte) Que revelação!
Mas o essencial é conquistar a vontade d'ella... Uma feliz lembrança! vamos partir todos para Braga...
Parece-lhe?...
(gracejando) O senhor não se arrisca a encontrar o assassino de Macario, pois não?
(rindo) É muito provavel que não...[58]
Vocês viajam juntos; e em quanto finge que faz indagações, vae lhe fazendo a côrte.
É isso, perfeitamente.
Eu vou tambem... bem me custa; mas em fim não ha conveniencias a guardar quando se trata do futuro de uma filha.
Mil graças, snr. Barnabé.
Venha commigo ao meu quarto, e ajuda-me a fazer a mala.
Com muito prazer! Estou contentissimo!
E então eu! Vi-me livre do Macario! Que bem fez o senhor em matar esse bigorrilha! (Entram pela esquerda)[59]
(só) Elle! foi elle o assassino de Macario! E meu pae sabia-o! e ambos elles querem que eu caze!... Mas que paiz é este... este Portugal... este mundo onde o assassino cubiça a noiva da victima! E pude conter-me! E não avancei para elle como uma leôa, como a pantera ferida! Oh! mas elle torna, e então... Não, não é com um golpe de punhal que elle hade morrer! Para crimes monstruosos é necessario vinganças excepcionaes! Hade morrer não a golpes de punhal, mas a picadellas de alfinete! Elle ama-me!... ama-me!... quer esposar-me!... por que não? por que não? Pois não é justo que o seu nome e a sua honra me pertençam? (ironica) Ah! com que jubilo eu não proferirei deante do sacerdote, o ditoso sim, a doce renuncia de mim toda! Nunca uma noiva apaixonada, mais ternamente, nunca uma solteirona de 35 annos terá proferido esse sim com maior exultação! Ah! parece-me que me estou vendo e ouvindo quando o padre me disser: «Recebe como esposo o snr. Liborio?» e eu com a coroa de virgem na fronte e a raiva no coração e a injuria nos labios e os olhos em terra, responderei «sim,[60] sim, sim!» Ó meu Macario, conta com uma vingança desconhecida na Europa! uma vingança mexicana! Ah! lá da mansão celeste, tua derradeira morada, ver-me-has com ufania!... Vem gente... é elle!... Cala-te, meu coração!... Sorride meus labios! Silencio, minhas saudades! É forçoso! é forçoso!... (Senta-se junto ao piano).
(fóra) Confio-lh'a; mas não lhe dê grandes abalos. (Entra pela esquerda com Liborio).
(com uma grande mala) Peza que tem diabo!
Peza, peza... Obrigado... Eu é que já não posso com isso.
(vendo Itelvina, baixo a Barnabé) Cá está ella... Álerta![61]
Justo... Façamos caras dolorosas. (Avança e pára) Cuidei que ella estava arranjando as malas...
(baixo) Está a pensar n'elle...
(aproximando-se em tom maguado) Itelvina, Itel...
Quem me chama?
Ninguem... isto é, sou eu, teu pae. (Aponta para Liborio e faz com que ella o veja com a mala). Estamos promptos para partir...
(como se não entendesse) Partir não entendo...
Não entendes? boa!... O snr. Liborio contou-me...
Então já sabe?[62]
Sim, sei. Que se lhe ha de fazer? A Parca é inflexivel!
E o papá tem grande pena, não tem?
E que pena! aqui tens a prova... ali está a mala... Resigno-me a ir a Braga, auxiliar-te nas tuas indagaçoens.
Quaes indagaçoens?
Então nós não vamos procurar o assassino de...
(erguendo-se de golpe) O assassino de Macario?... (Avança para Liborio, que sustenta sempre a mala, e recua deante do olhar d'ella) O senhor que tem? que tem o snr. Liborio?
Eu?... nada...
Pensei que estava atarantado...[63]
Um pouco, com esta mala...
(á parte) O remorso estrangula-o!... (alto) O senhor era amigo d'elle, não era? muito amigo d'elle, pois não?
Está bom, está bom... tem muito tempo de conversar na jornada...
Qual jornada?
Pois nós não vamos a Braga?
Fazer o quê?
Mas o snr. Liborio não me disse que tu...
Ah! sim... no primeiro momento, queria... pensava mas mudei de tenção... Não vamos.[64]
(deixando cahir a mala) Hein?
Boa vae ella!
De que serve procurar esse feliz contendor... O duelo é um jogo d'azar... e a minha vingança não se submette ao acaso... (Passa para a direita)
Apoiada! tens muita rasão! isso é que é ter juiso! (A Liborio) Está applacada!... Bravo!
(á parte) É o arco da velha a annunciar trovoada.
(entrando pelo fundo) Está o almôço na meza.
Põe mais um talher.[65]
Trez talheres?
Pois então, meu pae! não ha nada mais natural... O snr. Liborio, que chegou de Braga, e que veio prestar-nos um serviço, não duvidará acceitar...
Eu... mas... (á parte) Bem disse eu que era o arco da velha... (alto) com muito prazer.
O seu braço, snr. Liborio. (Liborio offerece-lh'o e sobem).
(á parte) Este será tambem um noivo?
(á parte) Que mudança ella fez!
(para o pae) (Parando á porta do fundo) Então, meu pae? Vem? está a pensar no Macario, ou no assassino de Macario? Vamos almoçar. (Sahem).[66]
(pensativo) Máo! máo! Bem dizia o Liborio... O arco da velha vae dar muita chuva... (Segue-os).
(Ao correr do panno, a scena está alumiada pela lanterna, deixando na penumbra o leito. Quando corre o panno, Itelvina, erguida ao fundo sobre uma cadeira, pendura uma das botas de Liborio n'um painel; depois desce, pega da lanterna,[68] examina a bota, e diz:) Bem... está como se quer... d'um bello effeito! Mas, se elle não visse... Ah! tenho aqui linha... (Põe a lanterna sobre a meza, e sacando da algibeira um novello de linha torna a subir á cadeira, prende a extremidade da linha á bota; e descendo, traça com o fio no taboado uma linha que vae até á meza sobre a qual põe o novello; ahi pega d'um bocado de gis, senta-se e escreve sobre a meza, fallando em voz alta.) «Seguir o fio». (Ergue-se, e vae ao pé do leito). Acordaria elle?... não. (Ouve-se resonar ao fundo) Elle resona, o miseravel resona! Condemnei-o a passar as oito primeiras noites de casado em uma completa solidão, e elle resona indifferente á minha auzencia! Antes assim!... Hoje entramos na nova crize, a crize das pequenas mizerias, as picadellas dos alfinetes antes das punhaladas... Vejamos se me lembrou tudo. (Senta-se á meza, e lê em uma carteira á luz da lanterna). «Despregar por tres lados os cortinados do leito para que lhe cáiam sobre o nariz.» Isso está feito e bem me custou...(Lendo:) «Furar os charutos». Já furei. «Polvilhar de pimenta o bonnet.» Já tem. «Coser os lenços ás algibeiras». Estão cosidos. «Esconder um dos chinelos e uma das botas; adiantar a pendula e atrazar o relogio; deixar-lhe só um tostão no porte-monnaie, e cortar os elasticos dos suspensorios». Está tudo feito. (Lendo:)[69] Acordal-o de sobresalto para lhe causar um grande estonteamento». É o que se vae fazer. (Ergue-se e dirige-se com a lanterna para a porta da direita). Ah! Liborio, assassino de Macario, o céo é justo, e a hora da vingança soou! (Proferindo esta phrase, tira da algibeira uma pistola; dita a ultima palavra, dá um tiro e sahe fechando sobre si a porta. Completa escuridão.)
(só) Ui! isto que foi? Que é isto? (Espreita por entre as cortinas). Entre quem é! Quem está ahi? Não é ninguem... quem foi que me acordou? Parece que ouvi um tiro ou um espirro enorme, não sei bem o que foi... Estaria eu a sonhar? Ninguem aqui vem espirrar de noite no meu quarto, e mais sou casado, casado ha oito dias! Tudo está em repouso, excepto a minha imaginação. Isto que horas serão? As cortinas estão fechadas... não se vê boia... escuro como um prego... Felizmente o meu relogio é de repetição (Toca na mola do relogio pendurado no espaldar do leito, e ouve 4 horas). Quatro horas! ainda quatro horas! Ah! as noites solitarias!... como são eternas! Vamos vêr se se adormece... (Deita-se, a pendula dá horas,[70] e elle conta-as em voz alta, erguendo a cabeça a cada nova pancada). Uma, duas, tres, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez... Dez horas! Como dez horas! E o meu relogio que só dá quatro... (Assenta-se na cama) E são ambos do mesmo relojoeiro! Mas, se ja fôssem dez horas, eu devia estar a pé. Principiemos por abrir os cortinados. (Puxa pelas cortinas que cahem e o embrulham) Que é isto, com dez raios de diabos... Larguem-me, larguem-me!... Larguem-me o quê?! Grande besta que eu sou! Ninguem me prende... são os cortinados que eu agarro... que me agarram a mim. (Ao desembaraçar-se das cortinas cahe da cama ao chão) Que trapalhada é esta! o dia principia mal... Vou correr as cortinas e os stores. Não gosto da escuridão. (Abre: é dia claro) É dia claro! A pendula tinha rasão. Toca a vestir depressa. (Pega das calças e vae vestil-as atraz do fauteuil; calça um chinelo e procura o outro) Onde estará o outro sapato? Não me apparece senão este... Parece-me obra do diabo isto! Vou calçar as botas. (Depois de calçar uma) Onde está a outra? Como é isto de achar só um chinelo e uma bota? Seria a Sebastiana? Ella ficou de me chamar ás nove horas, e entraria sem eu dar fé... mas para que fim me levaria só uma bota? (Trata de cruzar um suspensorio que quebra) Irra! agora são os suspensorios! (Aperta o outro, enraivado) Que inferno este! (Quebra o outro) Lá vão ambos![71] (Atira-os ao chão) A fivela estará direita? está... segura-se... Valha-nos isso. (Procurando) O meu bonet? Está acolá... (cobre-se) A camisola? está aqui... (veste-a). Agora, vou procurar... (suspende-se) Mas se ainda é cedo... (espirra) que raio de cheiro a pimenta! Se a Sebastiana tivesse vindo, acordava-me como eu lhe ordenei... Não serão ainda nove horas? Receio de ir acordar... Vou fumar um charuto. (Pega de um charuto e phosphoro) O fumar de manhan aclara-me as ideas. Santo Deus, como é incommodo passear com uma bota e um chinelo! (Assenta-se á esquerda do gueridon) Em quanto Sebastiana não vem, recapitulemos os meus infortunios fumando um delicioso havano... (espirra) Que é o que cheira aqui tanto a pimenta? (Pretende accender o charuto) Era meia noite. Itelvina pertencia-me ao cabo de trez mezes de scenas exquisitas; ella tinha proferido, de manhan, com uma voz energica o sim encantador que me dava sobre ella direitos senhoriaes absolutos. Dançava-se no salão amarello, e havia uma hora que eu amaldiçoava os relogios (Não podendo accender o charuto atira-o ao fogão e vae buscar outro) que me pareciam todos parados. Annunciára-se finalmente a ultima quadrilha, os dançantes começavam a cancanizar-se um pouquito... (espirra) D'onde virá este cheiro a pimenta? Minha mulher dançava com o tabellião, e parecia muito emocionada...[72] Eu attribuia a mim esta emoção que o tabellião não justificava de modo nenhum... Em fim, sôa a meia noute. (Ergue-se). Ouve-se um grito agudissimo... Corro e exclamo... (Atira fóra o segundo charuto) Que é o que tem estes charutos? (Pega n'um terceiro)... e exclamo: Céos! minha mulher! Itelvina estava desmaiada. Tinha torcido um pé quando polkava com o tabellião; e eis-me aqui, á meia noute, a primeira das minhas nupcias, á procura d'um indireita. A final, topo um; e cuidando que á meia hora depois da meia noite, tinha direito a examinar o estorcegão do pé da minha esposa, entro com a faculdade algebrista até ao seu leito de dôr. (Accende o terceiro charuto) Baldada esperança! Nega-se-me obstinadamente este primeiro favor, e sou obrigado a esperar n'um quarto proximo, com o papá Barnabé, a sahida do doutor que, depois de um quarto d'hora de angustias, veio em fim declarar-nos que uma forte distensão dos ligamentos, uma contracção terrivel da articulação, reteriam minha mulher quinze dias de cama; e com effeito, depois... T'arrenego, diabo! este charuto está rôto! E os outros? (Examina a caixa) Estão todos estripados! (espirra) Com toda a certeza, tenho pimenta nas ventas! (Tira o bonnet) Ah! aqui está a pimenteira! É possivel!... como é isto? Sebastiana mette a pimenta no meu bonnet... (atira-o fóra) para o[73] preservar do bicho... hade ser isso, mas ella é idiota!... (espirra) Que é do meu lenço? Está cosido! Cozeram-me o lenço á algibeira, como aos rapasinhos de escola... Ah! isto é um cumulo! (Puxa por um cordão de campainha proximo á cheminé) Não me importa acordar toda a gente! (sacode a campainha).
(fóra) Lá vae, lá vae, senhor!
Vamos a esclarecer isto tudo...
(fóra) Que banzé é este?
O sôgro... sôgro de mão cheia... (gesto ironico. Barnabé e Sebastiana entram pelo fundo).
O senhor está doente?
Será preciso chamar os bombeiros?[74]
(a Sebastiana) Vem cá... e responde.
Quem, eu?
Que tem o meu genro?
Passados cinco minutos, tem-me ás suas ordens. (a Sebastiana) Vem cá... Que horas são?
Então foi para saber que horas eram...
Snr. Barnabé, não é comsigo que eu fallo. (a Sebastiana) Quantas horas são?
Oito e meia, senhor.
Por que é então que o meu relogio tem quatro e a pendula dá dez e meia?[75]
Eu sei cá! pergunte-o ao relojoeiro.
Ella tem rasão; o seu officio não é esse. Ella de pendulas não percebe nada.
Espera um pouco. (a Sebastiana) Por que metteste pimenta no meu bonnet?
Eu?! que metti eu?
Sim... isso lá da pimenta é com ella... Responde sobre a pimenta, rapariga!
Por que furaste os meus charutos?
Eu furei os seus charutos!...
Ella furou os charutos?... Tu furaste... (a Sebastiana)[76]
Por que me coseste os lenços ás algibeiras?
Olha que espiga!
Pois tu coses os lenços?...
Isso é falso, senhor!...
(mostrando) Estão cosidos ou não estão cosidos?
Eu cá não fui.
E os cortinados do leito... e os chinelos que deviam estar aos pés da cama...
Nos seus pés, quer dizer o meu genro.
Meu sogro, queira amordaçar o seu espirito[77] que me está arreliando. (a Sebastiana) Em fim, responde, explica-te.
Não percebo patavina.
E dois.
Não percebem que se está aqui representando uma magica de pessimo gosto... uma diabrura de auctores anonymos...
Não está má essa! O senhor disfructa-nos!
É lá possivel a diabrura! cruzes, canhoto!
Desde esta manhan estou sendo uma almofada em que mão desconhecida espeta alfinetes... Notem isto... Aqui está uma bota. Pergunto eu: onde está a outra? Aqui está um chinelo; e o outro onde está?[78]
(procurando) Eu procuro... (Aproxima-se da meza e vendo o que está escripto) Esperem lá!... (Lendo) «Seguir o fio.»
(approximando-se) Seguir o fio?!
(o mesmo) Então sigamos o fio. (Seguem os tres o fio da linha. Sebastiana á frente vae innovelando o fio. Barnabé atraz) Onde vae isto parar? (Vão indo até chegar á parede) A linha aqui, trepa! (Levantam as cabeças).
(vendo a bota) Olha!
É ella!
A minha bota!
A sua bota!
É verdade, a bota![79]
(passando para a direita) Quem a pendurou acolá?
(tirando a bota para baixo) Eu não fui.
Menos eu.
Por consequencia...
O snr. Liborio tem estado a mangar comnosco... Isto é uma chalaça... não ha que vêr...
Hein?
(rindo) O meu genro hade ser sempre um pandego...
Quiz-nos impingir esta comedia.
Irra! Foste tu; olha que te ponho no olho da rua!...[80]
Oh senhor!...
Como imagina o senhor que esta rapariga...
Se não foi ella... foi o senhor.
Meu genro!... ousar desconfiar que um antigo negociante...
Tem razao... seria espirito de mais para um antigo negociante... Mas o certo é que nós aqui não sômos senão trez. Minha mulher não póde ser, porque está de cama com um pé torcido.
A respeito d'isso, parece que ella está melhor do pé... O senhor sabe que ella está melhor do pé...
Como eu que sei?[81]
Eu ouvi o meu genro esta noite abrir a porta do quarto d'ella.
Eu?
E que balburdia o senhor fez!...
Eu?
Se não receasse ser indiscreto, vinha cá abaixo.
O senhor está doudo! Eu não sahi d'aqui!
Ora, deixe-se d'isso...
(reflectindo) Achei o que é... Já sei...
(vivamente) Achaste quem é que manga comigo?[82]
É o senhor mesmo.
Eu?
Elle? dize lá...
(a Barnabé) Eu tive um primo que fazia o mesmo... levantava-se de noite...
Um somnambulo! Ella tem razão... O snr. Liborio é somnambulo.
É isso, é isso, somnambulo...
Eu somnambulo!... está bem!... fico sciente!...
É que o senhor não se lembra do que fez. Uma noite, meu primo, entrou pelo meu quarto[83] dentro, e abraçou-me; e eu como sabia que é um perigo acordar os somnambulos, nada lhe disse, e elle ao outro dia não se lembrava de nada.
É lá possivel que fôsse eu!...
Então quem havia de ser?
É assim... é--está tudo bem explicado... mas será dificil fazer-me crer que eu a dormir rompesse os meus charutos, que deitasse pimenta no meu bonnet e cozesse os meus lenços.
Aqui estou eu que fui somnambulo quando era pequeno, e escrevia os traslados a dormir...
(á parte) Estou inquieto... (Alto) Meu sôgro, e tambem tu, Sebastiana, peço-lhes que não digam nada do acontecido a minha mulher.[84]
Eu cá por mim...
Fique na certeza...
(scismando) De mais a mais, eu não sei cozer... Como é possivel que eu soubesse cozer a dormir?...
Ó meu senhor, o meu primo só sabia abraçar-me quando estava a dormir... Chama-se a isso vista dobrada.
(á parte) Este caso faz-me desconfiar...
(fóra) Quem me acode, quem me acode!
Minha filha![85]
Senhora!... (Todos se dirigem para a porta da direita que se abre para dar passagem a Itelvina que entra em toilette de noute com a perna direita ligada encostando-se á parede).
Socorram-me... uma cadeira... amparem-me... (Liborio e Barnabé pegam em Itelvina em quanto Sebastiana puxa a cadeira para o centro da scena).
Pois tu ergueste-te?
Então isso como vae? melhorzinha?
Pelo contrario... cada vez peor.
Era melhor ter tocado a campainha.
(deixando-se cahir no fauteuil) Ai! devagar, devagar... Sebastiana, um banquinho...[86]
(chegando-lh'o) Aqui está... venha uma almofada... (Sebastiana traz a travesseirinha que elle colloca sobre o banquinho; depois quer pegar na perna da mulher) Com licença...
Não lhe toque... Ai! a menor pressão... (pondo a perna sobre o banco) Ai!... como eu estou!... (Sebastiana tem passado para a direita).
Para que te ergueste tu?
Eu estava melhor... quiz experimentar... E, depois que me levantei, achei-me tão boa, que pensei poder vir até cá; mas receio bem ter aggravado o mal...
(á parte) Vamos bem!... o casamento está para demora... O meu matrimonio está pendente d'um pé desnocado... Se isto não fôr pé de cantiga, fico toda vida a fazer pé de alferes a minha mulher coixa.[87]
(que tem estado a conversar com a filha) Fizeste muito mal em te levantares... Eu não posso demorar-me por que tenho de fallar com o José Francisco Braga que me quer ceder a quinta da Carriça... E, como não pude arranjar a de S. Mamede de Infesta, vou-me lá.
Então o pae quer deixar-nos? Muda de casa?
Ó meu sôgro!... (á parte) Não seria máo...
Sôgro... precisamente... um sôgro entre uns casados que se adoram, é incommodo... é emprasador...
Ora...
Ora... (á parte) Diz muito bem...
E, n'esse caso, resolvi... com muito pezar... com muita saudade... ir viver sósinho...[88] o que me hade custar muito... na aldeia... É um sacrificio... vou victimar-me á felicidade dos meus filhos... E além d'isso, está no meu gosto... a meditação... divagar solitario no seio da natureza...
Então não o demoramos, meu pae; mas esperamo'l-o para o almoço.
Não será possivel... Tenciono almoçar no botequim... Não gosto de almoçar de garfo; prefiro o meu café com leite, uma torrada, e o Primeiro de Janeiro que é tudo leve.
Plena liberdade...
Liberdade... liberdade...! E, se tu agora peorasses...
Não... eu sinto-me melhor... Sebastiana ficará ao pé de mim, e se fôr preciso, o Liborio vae chamar o medico.[89]
E eu não me demorarei muito tempo... Se o José Francisco lá estiver, antes do meio dia volto a casa... Vou tratar depressa este negocio... Então é verdade que estás melhorsinha?
Sim... n'este momento quasi que não soffro.
Então vou acabar com isto... Meu genro, aqui lh'a entrego...
Vá descançado, meu sôgro.
(abraçando Itelvina) Até logo, minha Lili... Vou-me já safando, por que, se fôsses a peor, teria de ficar, e fazia-me desarranjo. (Sahe pelo fundo).
(acompanhando-o) Arrange lá os seus negocios e não se apresse...[90]
(á parte) Vou em fim saber o resultado das minhas primeiras picadellas de alfinete.
(voltando de bom rosto para junto de sua mulher) A senhora aqui... na minha alcôva... Que surpreza!
Ora esta! O senhor traz uma bota e um chinelo?!
Foi a Sebastiana que...
Eu? E elle a dar-lhe...
Ou eu... É muito possivel que fôsse eu... Eu tenho padecido tanto depois do nosso casamento... que posso estar doudo... (Ergue-se).[91]
(á parte) É possivel que elle se persuada...
(ao pé do leito) Ora esta! as cortinas estão rasgadas! quer vêr?
É isso, é isso; fui eu... Quando me erguia, puxei pelos cortinados, e zás!... é preciso chamar o estofador.
(á parte) Está persuadido que foi elle...
(á parte) Ella acredita que eu sou somnambulo!...
(arrumando) Este quarto está n'uma felga...
(á parte) A mulher é capaz de ficar... Detestavel creatura!
(olhando para a pendula) São onze horas?[92]
(á parte) Ai! já onze!
Não, minha senhora, só são nove horas... Eu não sei como isto seja! A pendula do senhor adianta-se, e o relogio atraza-se.
Como será isso? entende-se bem... é muito simples... Sou eu que desmancho tudo... Como heide eu andar direito, se o pé torto de minha mulher não me sáe do espirito?!
Pobre Liborio! (á parte) Elle será tão estupido? (Alto a Sebastiana, mostrando-lhe os suspensorios que estão no chão) Sebastiana, levanta isso.
(erguendo os suspensorios) O senhor estragou assim os seus suspensorios?
É verdade, é verdade... Foi de proposito.[93]
De proposito?
Encommodavam-me. (á parte) A creada já me inoja...
(á parte) Como elle é tão philosopho, dobrarei a doze...
(a Sebastiana) Sebastiana...
Senhor.
Seria bom tratar do almoço.
Sim, meu senhor; mas, se a senhora precisar de mim?
Se precisar, chamo-te... Faze um almoço ligeiro, refrigerante. (Sebastiana tem passado para a direita).[94]
Eu tinha dado as ordens; mas, se as não approva...
Eu? tudo o que a minha esposa quizer é o que eu quero... Sebastiana, vae preparar o almoço que a senhora ordenou.
Sim, meu senhor. (Sae pelo fundo).
Ah! tu queres um tête-à-tête... Vamos a isso...
(á parte) Sosinhos! estamos sosinhos! (com transporte, sentando-se ao lado de Itelvina) Ah! Itelvina! Minha esposa! querida...
Que é, meu amigo?[95]
Desculpa a minha perturbação!... esta emoção!... este primeiro tête-à-tête... porque é o primeiro... o primeiro... depois que és minha mulher, e que me pertences, Itelvina!... por que tu és minha, és o meu bem, o meu thesouro, a minha vida...
Sim, Liborio; somos um do outro, são inseparaveis os nossos destinos... Eu sou sua como o senhor é meu... O senhor póde esquecer isso... eu é que jámais!...
Esquecer, esquecer, eu! Se tu soubesses as noites tormentosas que eu passo!... o que me custa a adormecer... as reflexões que precedem o meu somno... os sonhos que o acompanham... Queres que eu t'os conte?
Pois sim, conte lá.
(erguendo-se) Ás vezes, vejo-te sahir d'uma floresta como a Armengarda do Alexandre[96] Herculano das penhas da Covadonga; outras vezes estamos os dois n'um paraizo terreal como Adão e Eva... e eu a apertar-te ao coração (aproxima-se) a apertar-te... (Cinge-a com os braços).
(gritando) Ai! ai!
(recuando) Tu que tens!
Ah! que dôres!
(á parte) Diabolico torcegão!...
Isto passa... não é nada... foi um geito que o senhor me fez dar. (com a voz natural) Póde continuar, meu amigo.
Em que estavamos nós?
Estavamos no paraiso terreal.[97]
É verdade, um ao lado do outro.
O senhor abraçava-me...
Mas, presentemente, não me atrevo...
Isso não faz nada ao caso... o abraço era a sonhar...
Itelvina!
Liborio!
O nosso cazamento não é um sonho... pois não?
Decerto não, meu amigo.
E todavia...
E todavia...
Olha, Itelvina, eu queria que o pé torcido fôsse meu; ainda que tivesse torcidos ambos[98] os pés não deixaria de me lançar nos teus braços... Não ha supplicio comparavel... Ah! Tantalo no meio da agua, debaixo de arvores carregadas de fructos que elle não podia trincar... Eis a minha posição!... a arvore... és tu! Tantalo, sou eu! Tenho fome, e não posso comer... Horrivel!
Então o senhor padece muito, não é verdade?
Até ao extremo de me tornar cruel e insensivel ás tuas dôres... Quando ahi te vejo, face a face, não ouço senão a minha paixão e... (abraça-a)
Ai! ai! meu Deus! ai!
(erguendo-se) Não, não, não... nada de novo... mesmo nada... (á parte) Tudo como d'antes... Quartel general d'Abrantes...
Ai que dôres! que dôres lancinantes!
Se sou o culpado, peço desculpa...[99]
Ah!... vae passando... adormece... Ah! respiro! (tom natural:) Póde continuar, meu amigo.
Continuar... o quê?
Isso que me estava contando... que era muito bonito...
(á parte) Ella parece innocente como uma ovelhinha recem-nascida! (alto) Minha senhora, se me dá licença, ataremos o fio partido do cavaco quando a senhora estiver san.
Mas... por quê?
Porque esta palestra... agita-me... agita-me bastantemente.
Ah! sim? então fallemos d'outra coisa.[100]
Sim... de coisas frias... historias da Siberia... Fallemos do Marão, da Serra da Estrella.
Diga-me cá, não o incommoda andar com uma bota e um chinelo?
Incommoda-me horrivelmente... e, se me dás licença, calço a outra.
Se dou licença? ora essa... Póde calçar.
(calçando a outra bota) De mais a mais, este acto não é por nenhuma maneira provocante nem estimulante... até acho que faria bem em me vestir... (tira a camisola)
Vestir-se?
Sómente vestir um colete e uma rabona (á parte) Creio que um marido, sem faltar á decencia... (Emquanto falla, vae abrir o gabinete[101] da toillete, e recebe na cara o outro chinelo que pendia d'uma guita) Cá está o outro chinelo!
Tinha-o perdido?
Nada, fui eu... Estou no habito de todas as noites...
Pendurar um dos chinelos no gabinete de toillete...
Sim... isto é... quero dizer... Ordinariamente penduro os chinelos... não, eu ponho-os ambos aos pés da cama; mas aconteceu que pendurei este...
(á parte) É admiravel! nada o espanta! Forte idiota!
(á parte, tirando a gravata do gabinete) É inevitavel que eu seja somnambulo... acabou-se... sou somnambulo.[102]
É singular coisa! Tenho momentos em que não me doe nada o pé... perfeitamente bôa...
Esses momentos duram pouco (Procurando atar a gravata) Não me ageito!... maldita gravata... estou muito perturbado...
Quer que o ajude, meu amigo?
Agradeço, mas receio...
Venha cá... pois eu não sou sua mulher?
Ah!
O senhor diz ah!
Eu cá me intendo... (Ajoelha aos pés da mulher estendendo-lhe o pescoço e dando-lhe a gravata) Tu não me percebes... mas eu é que me comprehendo... Mysterios...[103]
(sorrindo) Então tem segredos para mim, Liborio?
Ah! Itelvina! que gentil, que formosa tu és! (Itelvina aperta a gravata) Ai!
(ingenuamente) Que tem?
É que me afogas!
É por que o senhor mexe-se.
Eu mexo-me por que tu me asphixias.
(maviosamente) Esteja assim quietinho... para eu lhe fazer um lindo laço. (Elle quer abraçal-a).
Ah! Deus do céo! que dôr![104]
(erguendo-se) Não, não... não me lembrou... (á parte) Apre! que situação! (Passa para a esquerda, e vae vestir o collete e a rabona que tira do gabinete).
Que dôres! que dôres!
(entrando pelo fundo) Está prompto o almoço, senhora. Onde quer a meza?
Não tenho appetite...
Nem eu tão pouco, a não ser que... Que ha que almoçar?
Ostras cruas, pasteis de camarão e sallada de lagosta.[105]
Ui! querem-me incendiar!
Não gosta do almôço?
Ha occasiões, menina, ha occasiões... mas, no estado actual, o que eu precisava era limonadas e orchatas.
Porque não vae almoçar com meu pae ao botequim?
Pensa que eu a deixava...
Não tem duvida... vá que eu preciso descançar.
Tambem eu...
Cá fica a Sebastiana... Vá e demore-se por lá, que eu preciso dormir.[106]
(que passou para a direita) Pois bem, seja assim; vá dormir, que eu vou tomar um pouco d'ar. (á parte) Ah! Itelvina, Itelvina, por que polkaste tu com o tabellião! (Sahe pelo fundo).
(que passou para a esquerda) Então, pelo que vejo, ninguem almoça...
Depois, Sebastiana, depois... mas tu não esperes. Almoças quando tiveres vontade.
Eu não posso deixar a senhora sósinha...
Pódes... Vou dormir... Vae, e fecha-me esta porta. (Sebastiana passa para a direita) Olha, para eu não acordar estremunhada, espreita, e quando o senhor vier, vem prevenir-me.
Sim, minha senhora. (á parte) Ella quer aqui dormir sósinha... porque será? (Sahe pelo fundo).[107]
(só) (está um instante quieta, mas, logo que a porta se fecha, desata precipitadamente as tiras que lhe ligam a perna, e entra a caminhar rapidamente). Ah! sim? tu comerás o almoço incendiario... hasde comêl-o por força! quando só encontrares no teu porte-monnaie um tostão para pagar o leite e as limonadas, é natural que voltes ao teu posto... Essa felicidade espero eu têl-a. Seja como fôr, vou tratando de armar as engenhocas para a noite que vem. Comecemos pelas campainhas de que elle abusa... Onde acharei eu com que as corte? (Vae ao gabinete da toilette e encontra lá uma faca de mato) Uma faca de mato! Ah! tu tens facas nos teus guarda-roupas?... tens!... está bom... esta hade servir-me... Vamos primeiro cortar... Cortar, não! (Atira com a faca para dentro do gabinete que fecha) O que se deve quebrar é o arame... Ah!... com a cadeira sobre o leito, chego acima... (Pega da cadeira, que põe sobre a cama, e sobe acima cantarolando. Ergue-se, de costas para a parede, e pega no arame com as mãos ambas) Oh! c'os diachos! parece-me muito rijo!... An! é puxar... (ouve-se tilintar a campainha) Ai que eu toquei! Se a Sebastiana me vê aqui...[108]
A senhora chamou?
Ai!
Onde é que está? (Vendo-a) Ah!...
Sio! cala-te!
Foi a senhora que...
Cala-te, que te heide dar uma prenda.
Então que quer que eu faça, senhora?
Espera ahi. (Puxando pelo fio) Záz! Záz! Está quebrado! (Quebra o fio, e o mesmo tilintar da campainha continua).[109]
(entrando pelo fundo quando sôa a campainha) Ella a chamar, a minha querida a chamar...
Ui!... meu Deus!...
Oh! co' a breca! Estou aviada!
(não encontrando a cadeira em que Itelvina ficou sentada e passa á esquerda) Como é isto? Ella não está aqui? (Vendo-a) Ólé!
(sempre sobre a cadeira; e com a maior naturalidade) Então já por cá?
Que fazes tu ahi?[110]
Como estava melhor do pé, quiz experimentar um passeio.
Passear lá por cima?... Ah! tudo se explica! O somnambulo não era eu... eram vocês as duas que...
Ó senhor! os diabos me leve se...
Retira-te.
Mas senhor... Raios me parta, se...
(avançando para ella) Rua! rua!
Rua?... mas...
Safa-te, ou eu... (Sebastiana dá um grito e foge pelo fundo. Liborio dá um pontapé no banquinho).[111]
(fechando a porta do fundo, e approximando-se de Itelvina) Agora nós dois, senhora! (silencio de Itelvina). Quando eu entrava no botequim, a inquietação fez-me regressar... Vejo que fiz bem... (silencio) Que geringonça é esta? queira responder.
Geringonça, dizes tu? perguntas-me que geringonça é esta?
Sim!... pergunto e quero saber.
(formalisada) Liborio, tu esmagaste o coração de uma mulher, o seu primeiro amor...
Eu? que esmaguei eu?[112]
Despedaçaste a minha vida, cobriste o meu céo com um crepe negro!... Assassinaste Macario!
Lerias!
Atráz, assassino! atráz, que me horrorisas!
Como? então é p'ramôr d'isso que?... Ora adeus! isso é pêta... eu não matei Macario nenhum.
Pois tu não assassinaste Macario?
Não tinha eu mais que fazer!... E a prova é que Macario está vivo e são.
Macario vive?
(reconsiderando) Eu cá de mim não o matei... (á parte) que ia eu a dizer? Ella ama-o! e, se sabe que elle vive, temos novo chinfrim...[113]
Ah! tu negas? não tens a coragem do teu crime?
Itelvina, palavra d'honra!... Quem te disse?...
Nada de questoens... Você está condemnado!
Condemnado!
Eu fiz um juramento, Liborio! e na minha patria não se quebram juramentos!
Isso nós veremos depois... A senhora jurou de encher de pimenta os meus carapuços? coser os meus lenços?...
Isso era um preludio... a farça antes da tragedia...
Tragedia?![114]
Para vingar Macario, cumpria que a sua vida me pertencesse, e por isso casei comsigo!
Então foi só para isso que...
Unicamente para me vingar, e nunca pelos seus attractivos, percebe?
Mas a senhora, casando comigo, tambem me deu a sua vida e...
A minha estava despedaçada... O sacrificio que eu lhe fazia era d'uns pedaços da minha existencia.
Mas a senhora sabe que eu sou uma especie de balão que não obedece ao movimento de vontades alheias?
Os baloens obedecem ao capricho do vento, e os homens ao capricho das mulheres.[115]
Sim? estou com curiosidade de vêr isso...
Eis o meu programma: (Com energia) Quero que cada um dos teus dias seja uma catastrophe! cada uma das tuas horas uma tortura! cada um dos teus minutos um grito de dôr!...
(com ironia) Diga lá o resto.
Heide fazer-te tragar todas as amarguras! cravejar-te com todos os punhaes!... passarás a vida sobre umas grelhas como S. Lourenço, e eu de vez em quando a voltar-te nas grelhas... e tu a arder, a rechinar... oh!...
Que enorme têlha!
É o teu futuro!
Mas é que eu fujo-te... podéra!...[116]
E eu vou atraz de ti. Sou tua mulher; a lei obriga-te a receber-me.
Excellente separação de corpos a que já estou habituado!... Divorcio-me.
E as provas? Pensas no divorcio? Cuidas que eu não previ já esse caso muito natural de me quereres escapar? Eu já li o teu codigo civil. Ninguem se separa sem provas e testemunhas; e tu nunca hasde arranjar testemunhas nem provas. Mulher mais terna do que eu, em publico, não hade haver segunda, heide acariciar-te, ameigar-te, se fôr preciso, que isso me não custa nada...
(á parte) Irra! estou a sentir uns calefrios na espinha...
Em publico, serás o meu amante, o meu heroe, o meu Deus! Serás um mortal ditoso e invejado!... possuirás uma gentilissima esposa, dedicadissima... e, se, um dia, ousares[117] queixar-te de mim, se promoveres o divorcio, passarás por um monstro extraordinario, por um ignobil... malandro!
(á parte) Isto é o José do Telhado disfarçado em mulher!
(indo para Liborio que passa á esquerda) Mas o anjo das salas será o demonio dos lares! quero que a tua vida se teça de espinhos dilacerantes. Não entrarás em tua casa sem cahir n'uma esparrela! Não poderás sahir sem te palpitar uma desgraça imprevista. E este amor... este amor que me pedias, heide dál-o a outro!
Oh! Shocking!
Sim! heide cuspir na tua honra!
(furioso) Senhora!
Eis o teu futuro, Liborio! eis o teu futuro! (sahe pela direita).[118]
(só, atordoado) Safa! caramba! É bècarre! Estou a abafar! ardem-me os miolos! Anda-me tudo á roda! Parece-me que estou n'uma jaula tête-à-tête com uma panthera solta... Falta-me a coragem para a lucta! (Cáe prostrado perto do gueridon) Que a panthera me devore! Resistir-lhe é-me impossivel!... (Fecha os olhos e fica immovel...)
(entrando alegremente pelo fundo) O meu negocio vae bem... optimamente.
É elle!... (levanta-se e sobe um pouco).
Ah! meu amigo Liborio, obterei a casa. O Braga ainda hesita quanto ao preço, mas eu conheço-lhe o genio... elle é condescendente... e emfim, viverei em paz e socego.[119]
(dirigindo-se-lhe) Em paz?... Sorri-lhe essa esperança? Pois não viveste...
Sim... sorri-me esta esperança.
O senhor é cumplice, não é?
Cumplice de quem?
Da besta-fera de quem se intitula pae?
Snr. Liborio! Modere-se!
É cumplice d'ella... Concorde... Apraz-me a sua confissão... Ao menos que a minha colera encontre um homem em frente d'ella...
Eu não o percebo! Será isto um ataque de somnambulismo?![120]
Somnambulo! Ainda está n'isso, o senhor! Não sabe que a farça se desenvolveu depois... o véo veio á terra... descobri o inimigo do meu descanço, o ente mal-fazejo que se mettia, de noite, no meu quarto, para me transtornar tudo...
Então... quem é?
A sua hedionda filha... a sua filha que o senhor teve artes de me impingir!...
Itelvina? o senhor está a mangar...
Sim... finja-se espantado!...
Com um pé desnocado? a minha filha?
(rindo amargamente) Pé desnocado! (rindo) Ah! ah! ah! ah! Não vê que ella me bigodeou?[121]
Mas para quê?
Para quê? para vingar Macario que ella me accusa de eu ter assassinado!
Isso é incrivel!
E quer saber o futuro que ella me destina? A sorte de Meneláo de Sganarello, de Vulcano e d'outras testas celebres.
E ella disse-lh'o? Mas, quando isso se dá, as mulheres nunca previnem os maridos...
É uma excepção...
Tudo isso é tão anormal... tão extravagante... (como assaltado por uma idea) Ah![122]
Que é?
Lá vou... Foi a palavra extravagancia que me orientou... Estou no caminho...
Caminho de quê?
O snr. Liborio sondou o pulso de sua mulher?
Ora essa!... sondar-lhe o pulso!... Não.
Fez mal. Esta excentricidade no seu proceder, este humor extravagante... explica-se tudo...
O quê? o que é que se explica?
É a crize ordinaria... Amigo Liborio, não succumba ao pezo da sua felicidade... Liborio,[123] vou dar-lhe um jubilo immenso... Olhe que vae ser progenitor! Vae ser pae!
(exasperado) Pae!
Sim! esses appetites desvairados... essa desordem moral...
(agarrando-o pelo colete) Ah! patife!
Hein? você chame-me patife? a mim?
É a minha deshonra que você apregôa!
(desagarrando-se sem poder) Que diz?
Você sabia-o e não me gritou: acautele-se!
Você esgana-me!...[124]
Mas agora estou convencido... (sacode-o cada vez mais).
Largue-me! socorro! ó da guarda!
Que é isto? que aconteceu? (Liborio larga Barnabé, que cahe assentado ao pé da jardineira. Liborio fica um momento immovel entre o sogro e a mulher, olhando-os alternadamente; depois despede um suspiro abafado, e sahe precipitadamente pelo fundo, fazendo um gesto de horror).
(assentado) Uf! (bufando)
O pae que tem! parece que está sobresaltado![125]
Sim... com certeza... eu não me sinto bastante bem. (respira fortemente).
Mas que aconteceu?
(erguendo-se) Aconteceu... mas não, as explicações são inuteis... Vou deixar esta caverna...
Mas emfim... que lhe disse o meu marido? onde foi elle?
Não sei nem me importa... Cá te avêm sem mim... Lavem cá a sua roupa suja como poderem, que eu tenciono ser estranho a esta barrela. Boas tardes. (Vae para sahir).
Mas... meu pae! venha cá...
Convence-te de que me vou embora (sobe).[126]
(tolhendo-lhe o passo) Ao menos diga-me...
Não digo... deixa-me!
Não hade sahir!
Impedir-me! (indo para ella) Minha filha!
Não sahe antes de me dizer...
Tudo o que eu tenho no coração? Vaes ser satisfeita! Tu, a meu pezar, envolves-me nas tuas combinaçoens ferozes! Pois bem... Tambem eu vou torturar-te... e desde já fica sabendo uma pequena coisa que te vae dar grande prazer! Macario existe! Macario vive!
Macario!
Nunca se bateu... não era tão bêsta, como[127] isso... É um maltrapilho, mas é velhaco... Elle logo conjecturou a linda mulhersinha que tu serias... e disse lá com os seus botões: «Não quero contas com a mexicana» e pediu a este bajojo do Liborio que viesse annunciar-te a sua morte, e este parvoeirão foi tão asno... que...
O pae está blasphemando...
Que é blasphemar?
Macario vivo!... Macario auctor de tal perfidia!... não, não, é impossivel!
Com que então impossivel! E, se eu te disser, que elle, bem contente por não entrar n'este langará, se consola em uma mancebia...
Mancebia?
Sim... com uma creaturinha, de pouco mais ou menos, rua de Miragaya n.º 1071, lado direito.[128]
Rua de Miragaya n.º 1071, lado direito...(Passa para a esquerda).
Mudou de freguezia; mas não de costumes... O fedor dos escandalos de Miragaya não passa da Cordoaria, e confunde-se com as flôres do jardim e do peixe do barracão...
Oh! isso seria horrivel! horrivel! (Liborio entra pelo fundo).
(com o porte-monnaie na mão) Minha senhora, eu tinha aqui 12$000 réis. Foi a senhora que lhe deitou o gatazio?
Logo o saberá quando eu voltar (Sahe).
Onde vae você?[129]
Rua de Miragaya n.º 1071. (Sahe precipitadamente pelo fundo).
Que é? Rua de Miragaya n.º 1071! Quem lh'o diria? (A Barnabé) Foi o senhor... Rua de Miragaya, é lá effectivamente (Ouve-se fechar á chave a porta do fundo) Ella fecha-nos! e vae a casa d'elle! a casa d'elle! (Indo á porta da direita) Por esta porta... (Ouve-se o rodar da chave que a fecha) Fechada! fechada tambem! (correndo á chaminé) Sebastiana! (pucha pelo cordão da campainha) Não ha campainha! está quebrada a campainha!
E o Braga que me está esperando para assignar a escriptura!
Eis-me encarcerado!
E eu!
(fóra de si, ameaçando Barnabé) Ah! seu biltre! foi você a causa de tudo isto! (Atira-se a[130] Barnabé, que procura fugir-lhe, aos encontroens aos trastes. Liborio persegue-o vivamente. Cahe o panno, quando Barnabé está apitando).
(examinando a rua) Nada, não vejo vir ninguem. Que horas são, snr. Barnabé?
Outra vez... Depois do nosso combate... singular, já me perguntou isso trez vezes.[132]
A quem heide eu perguntal-o? ao meu relogio? á minha pendula? Tudo aqui está desmanchado (á parte) como a cabeça de minha mulher (Levanta a cadeira).
Ha cinco minutos que eu lhe disse que eram 3 e 25; agora, por consequencia, são trez e meia.
(passeando com grandes passos) Ella sahiu ás duas horas... (dirige-se a Barnabé) Como explica o senhor isto? Auzente á hora e meia! (Arruma os trastes).
Não que d'aqui de Malmerendas a Miragaya são dois kilometros. Dê-lhe tempo...
Que lh'o dê? Ella toma o que quer! Fechar o pae e o marido para ir...
Minha filha é incapaz de tal...[133]
É capaz de tudo: é Mexicana, e basta.
Não o contrarío, para você não pegar de novo comigo. (Levanta-se e põe o colchão sobre o leito).
Ah! o senhor tem magnificas ideias! Que eu era pae! Esta só pelo diabo! eu podia lá ser pae, homem!
E eu podia lá imaginar que o senhor depois de casado?... Emfim, o que eu lhe disse era para o applacar...
E para applacar minha mulher disse-lhe que o Macario era vivo. Foi isso?
Está claro; as minhas intençoens fôram sempre boas... eu não tive culpa, se o senhor é um marido... distincto.
Que horas são?[134]
(tirando o relogio pacientemente) Trez e trinta e dous minutos. Outra vez. O melhor é ficar com o relogio na mão, (fica assobiando) até o senhor acertar o seu.
O senhor assobia?
Então o senhor quer que eu chore? Deixe-me assobiar, homem! Ha paixoens d'alma que não desafogam se não pelo assobio... situaçoens crueis em que um homem sente a necessidade de estar sempre não só a assobiar, mas até a apitar.
Tem rasão. Quando se possue uma filha como a sua, e uma esposa como a minha, todas as manifestaçoens do assobio e do apito são permittidas. (Barnabé continua a assobiar) Tem rasão. Assobie á sua vontade... use de todos os instrumentos de sôpro... Desabafe, snr. Barnabé, que eu faço o mesmo. (Assobia tambem. Ouve-se ruido de passos). Sio... escute...
Será?... (rumor na fechadura).[135]
É ella!
Prudencia, snr. Liborio, prudencia...
(sentando-se n'uma cadeira á esquerda, e pegando de um jornal de sobre o fogão) É ella... (atira os pés para cima de uma cadeira).
(á parte) Elles vão-se agatanhar!... se eu podesse tingar-me...
Meu pae! deixe-nos sós. (Barnabé, sem responder, safa-se apressadamente pelo fundo).[136]
Vi Macario. Não estava só... Estava com uma creatura com um penteado de estardalhaço, muito estapafurdio. Iam sentar-se á meza... e eu puxei pela toalha e quebrei tudo... (Movimento de Liborio, que logo se riprime, e retoma a sua apparente tranquilidade). Levantaram-se ambos e avançavam para mim; eu fiquei de braços cruzados, serena, immovel, encarando-os assim! Depois affastei-me lentamente, sem dar palavra, e sahi! (Silencio. Itelvina dá uns grandes passos) Ah! o que são os homens! o que são os homens! (Torna para o marido) Por que é que o senhor me annunciou a morte d'elle? (Silencio) Eu sei-o, disse-m'o meu pae... foi elle, esse miseravel que assim o quiz, não foi? O infame Macario escarneceu o meu amor, ludibriou a minha angustia! Ah! é incomprehensivel! é execravel! (Pega da cadeira em que o marido tem os pés e senta-se ao lado d'elle) Como é que nós havemos de matar Macario?[137]
(agitado, erguendo-se) Que diz?
(fazendo-o sentar-se) Ambos nós andamos mal, Liborio. Eu cuidei que tu o matáras... Não se falle mais no passado... acabou-se... Agora, unamo-nos para a vingança... Como é que se hade assassinar Macario?
(erguendo-se) A senhora terá o diabo no corpo?
Se estivessemos na minha patria, eu não o consultava; mas aqui, os homens que fizeram as leis, reservam para si o monopolio da vingança, e a honra de uma mulher nada importa, se não implica com a honra do homem. Pois então, snr. Liborio, visto que me esposou, a minha honra é a sua. Um pulha, um sacripanta escarneceu sua mulher... cumpre-lhe evitar que elle o escarneça tambem a si... (com ternura) Mata-o! filho! mata-o!
(á parte) Arreda! estou em braza![138]
(formalisada) Dar-se-ha caso que o senhor, escravo de vãos prejuizos, não queira attentar contra a vida d'elle sem expor a sua? Se é isso, esteja descançado. Se Macario o matar, eu não lhe sobreviverei, nem elle, por que morrerá ás minhas mãos; matal-o-ei, matal-o-ei, e depois lá nos veremos... no ceu! (Apontando-lhe para o ceu, bate-lhe com a outra mão no hombro).
A senhora com toda a certeza está doida!
Doida?
Então a senhora quer que eu vendime o Macario por que elle não quiz cazar comsigo... Tomára eu obrigal-o a cazar...
Senhor! veja lá o que diz!
Olhe, menina; isso que a senhora me propõe já Hermione o propoz a Orestes em uma tragedia de Racine, e sabe o que fez a canalha[139] da Hermione, depois que o parvo do Orestes matou Pyrrho? Poz-se a chorar por Pyrrho, e mandou o Orestes á fava. Aqui tem a gratidão das mulheres...
Por tanto, recuza?
Redondissimamente. (á parte) Isto é que é o chic da patifaria!
Bem! Eu pedia-lhe a cabeça de Macario para salvar a sua... Você não quer? não quer? não se falla mais n'isso.
Isso que quer dizer... explique-se!
Macario recuou deante dos laços indissoluveis; mas amava-me, estou certa d'isso, e eu... ainda o amo.
(levantando os dois braços) Que diabo![140]
E visto que o senhor desculpa o proceder passado de Macario, terá de desculpar tambem o futuro...
(agarrando-a pelos braços) Mulher!... Ah! tu pensavas que...
Largue-me!
Amas Macario?
Você magoa-me!
Os indigenas do Mexico que é o que fazem ás mulheres que se parecem comtigo?
O senhor está-me a quebrar os braços...
Póde ser; por que em Portugal, nós os homens, ao lado da lei, tambem temos a força.[141]
Isso é uma covardia!
Não sei se é; mas eu, se houvesse de matar alguem, não mataria o Macario...
Ai! (Cahe de joelhos).
Olhe bem para mim, senhora! (Ella quer morder-lhe a mão) e não môrda! Se cuidou que cazava com um cordeirinho, mude de opinião a meu respeito. Este homem que se chama Liborio, nascido no Porto, no Poço das Patas n.º 610, é de per si só mais feroz que todos os leopardos do Mexico... Não môrda, ouviu?
Ai!
Por emquanto, deixo-a viver; mas tenha juizo, muito juizo, ou dou-lhe a minha palavra de honra que não tardarei a passar a segundas nupcias! (Deixa-a).[142]
(conserva-se um instante immovel, como humilhada de sua fraqueza; relança á volta de si olhos furiosos, depois levanta-se de um pulo, exclamando:) Ah! a faca de mato! (Corre para o gabinete da toillete).
Bem sei... (Vae atraz d'ella, e fecha-lhe a porta por fóra logo que ella entra).
(fechada) Abra, abra a porta!
(pegando do chapeo) Medite, senhora, que eu passados tres dias, volto cá. (Sahe pelo fundo).
(batendo na porta) É infame, é abominavel! Snr. Liborio! Olhe que quebro a porta. (Pancadas cada vez mais fortes) Abra-me a porta; peço-lhe que me abra a porta por quem é! Oh! que vil, que indigno procedimento![143]
(entrando pelo fundo) Ora aqui está! Em quanto eu estive aqui fechado, o Braga vendeu a casa da Carriça... Tenho de procurar outra... (Itelvina bate á porta do gabinete. Barnabé que está perto, recua assustado) Que diabo é isto?
Abra-me a porta!
A minha filha fechada! (alto) Tu que fazes ahi?
Abra, meu pae, abra!
Mas como foi isto? (Vae para abrir).
Foi meu marido... Abra que eu lhe contarei.[144]
(retirando-se) Teu marido!... diabo! diabo! isso é mais serio...
Então, abre?
Minha filha, um sôgro não deve intervir entre marido e mulher.
Então não abre?
Procedo como fino politico... Mantenho-me na neutralidade, na não intervenção.
Mas eu suffoco!... (Grando tropel dentro).
Não suffocas, não... Isso passa!... (á parte) Ella arromba o sobrado!... (Sahe).
(batendo sempre) Meu pae! meu pae! Foi-se?... Socorram-me! Acudam-me![145]
A voz da senhora no gabinete de vestir... (Pousa o que traz sobre o marmore do fogão). É a senhora?
Abre, Sebastiana, abre a porta.
Ahi vou, ahi vou. (Abrindo) Que foi isto?
Péga! (Dá uma bofetada em Sebastiana).
Ah! a senhora bate-me?
(percorrendo o theatro furiosa) Ó raiva! ó furor![146]
Se eu soubesse que estava fechada...
Perdôa-me, perdôa-me, Sebastiana... É a colera, são os nervos... (Dá-lhe dinheiro) Pega lá, guarda...
Obrigado, minha senhora! (á parte) Ella é muito boasinha! (Põe a meza na jardineira).
(cahindo n'uma cadeira á direita) Tudo que me succede é incrivel! é estupido! Este homem que eu julgava um choninhas, um maricas, um fracalhão, agarrou-me, e prostrou-me supplicante! Elle furioso, parecia-me até bonito! (Voltando-se para Sebastiana que põe a meza) Que estás a fazer?
Ponho a meza, senhora.
Aqui?![147]
A senhora esqueceu-se das ordens que me deu esta manhan?
Ah! sim, sim, esta manhan... então ainda eu me preoccupava com pieguices... Mas agora... (Ouve-se a campainha) Tocaram.
Vou vêr. (Sahe pelo fundo).
(só) Não póde ser meu pae nem meu marido... elles não tocavam. Se fôsse elle... ah! talvez seja... Macario! Quem sabe se a minha presença, despertando-lhe lembranças, acordou a sua paixão... Ah! se fôsse elle, se fôsse elle...
(entrando pelo fundo. Traz uma garrafa, copos e um papel) Senhora, é um homem, enviado pelo snr. Macario, com este papel.
(pegando no papel com anciedade) D'elle? dá cá, dá cá. (Passa para a direita, em quanto Sebastiana[148] põe a garrafa e os copos sobre o gueridon. Á parte) Ah! não me enganei! Elle ama-me!... Triumpho, em fim!
(á parte) Ella que terá?
(lendo) «Anno do Nascimento de... 1885, aos 24 dias de... a requerimento...» Hein? papel sellado! (lendo) «A requerimento do snr. Macario dos Anjos, eu, official de justiça abaixo assignado, citei a snr.ª D. Itelvina Barnabé para pagar a quantia de 64$460 réis de porcellanas e crystaes quebrados, etc. etc. etc.» Ah!... (Cahe em uma cadeira á direita e fica silenciosa).
(que tem continuado a pôr a meza, corre para ella) Ai! meu Deus! a senhora achou-se mal?
(entrando cautamente pelo fundo e vendo Sebastiana que encobre a senhora) Sebastiana! A senhora ainda está no gabinete?[149]
(indo para o pae) Meu pae!
(querendo safar-se) Olha!...
Venha cá!...
Eu volto logo.
Fique, meu pae. Vae-te embora, Sebastiana.
Sim, minha senhora. (Sahe pelo fundo).
Vou-te contar... Descobri outra quinta no Candal.
Meu pae, eu volto para o Mexico.
Com teu homem?[150]
Já não tenho homem.
Não tens homem? Então Liborio o que é? Parece que tens razão... Elle para homem parece-me muito atrazado... Tu lá sabes...
Fujo de Portugal, das suas leis, do seu codigo, dos seus costumes (ironicamente) e da sua justiça...
Mas, desgraçada, tu vaes encontrar a mesma coisa no Mexico.
No Mexico?
Portugal não tarda a lá chegar com a sua influencia, com os seus jornaes...
Irei para a China.[151]
Não sabes que Portugal está em Macáo! Basta lá estar o Camoens na gruta.
Vou para o Japão.
Estão lá missionarios portuguezes... os jesuitas que tem um olho muito fino...
Irei para uma ilha deserta. (Passa para a esquerda).
Ah! sim! se achares uma... Ilhas desertas são hoje rarissimas... Não se apanha meia...
O pae vae comigo?
Eu!
É indispensavel...[152]
Nunca! Pede-me o que quizeres; mas viver só comtigo, isso, nunca!
Não importa. Vou sosinha. (Repassa para a direita).
Filha!... juisinho, filha.
Eu já não tenho pae... nem marido... nem familia. Parto! adeus! (sahe pela porta da direita).
(vendo-a sahir, depois diz tranquillamente) Fallaram-me d'uma casinha no Candal, e, se não fôr humida, tem muitas commodidades. Fiquei de me encontrar com o agente ás cinco horas, e...
(entrando pelo fundo, sem vêr Barnabé, e olhando para a porta do gabinete que está aberta) Ah! já a soltaram! Sim... definitivamente é a[153] melhor resolução... (Vendo Barnabé) Olá! o senhor!
Eu ia sahir.
Eu tambem parto.
E para onde vae?
Isso é que eu não sei; sei que vou para muito longe. (Passa á esquerda).
Muito longe?
Se vir sua filha, diga-lhe que morri.
(tranquillamente) Está bem; direi.
Diga-lhe que me matou Macario--dê-lhe esse regalão.[154]
Está dito. Vá descançado.
Vou arranjar a mala. (Entra no gabinete).
(vê-o sahir e ata o seu monogolo) É no Candal, suburbios de Villa Nova de Gaya; visitarei os armazens. Gaya dizem que tem um castello feito por um rei Mouro, e uma fonte celebre com uma agua muito fina, que seria a melhor bebida do mundo, se não estivessem ali perto as garrafeiras de 1815. Logo ali ao pé está o convento da serra, um logar historico... É um bello arranjo... com repuxo. (Desapparece pelo fundo--A scena fica vasia).
(entrando pela direita com uma malêta) Creio que deixei aqui o meu chaile e o meu chapeu (Põe a malêta sobre a meza).[155]
(sahindo do gabinete com a mala) Onde diabo deixei eu a minha Guia de viajantes?
(achando o chaile e o chapeo sobre a cama) Cá estão.
(achando a Guia) Ella aqui está.
(parando junto d'elle) Ah!... o senhor...
(surprehendido) Ólé!... a senhora.
Você parte?
Parto.
É boa! temos a mesma ideia!
Tambem vae?
Sim senhor... As ideas encontram-se.[156]
Muito bem; mas, embora se encontrem as ideas, é necessario que nós nos desencontremos. Para onde vae?
Para onde o senhor não fôr.
Temos o mesmo itinerario. (Assenta-se perto da jardineira, tendo a mala sobre os joelhos cujas correias afivela, depois de lá ter mettido pequenos objectos que tirou do marmore do fogão).
Eu vou para o sul.
Paizes quentes... vae muito bem. N'esse cazo, tomarei o caminho de ferro do norte.
Ás mil maravilhas.
Ora olhe... (consulta o Guia) Segue para Lisboa?[157]
Sigo no expresso.
Ás 7 da tarde.
Tão tarde!
Vejamos a linha do norte. Quatro e quarenta e cinco... que zanga!
D'aqui até lá, que se hade fazer?
Uma ideia que o estomago me inspira. Estou em jejum. Jantarei antes de partir.
Na estação de Campanhã? Pois vá!... Eu faço o mesmo.
(a sahir com a mala) Adeusinho, e estimo que coma com bom appetite.[158]
Da mesma sorte. (Vão ambos a sahir pela porta do fundo, e param, cedendo a passagem um ao outro cortezmente). Faz favor.
Queira passar, minha senhora...
Aqui está a sopa. (Passa por deante de Liborio e colloca a terrina sobre o gueridon).
A sopa!... Como cheira bem!
Está uma delicia, meu senhor! (sahe pelo fundo).
(á parte) Uma senhora sosinha n'um restaurante...[159]
(aproximando-se da meza) Que aromatica!...
(á parte) O que eu devo fazer é deixar-me estar (Depõe a malêta, o chaile e o chapeo).
(largando a mala) Se eu tomasse um caldo...
(indo á jardineira, e achando Liborio a destapar a terrina) Então sempre se resolve?...
Ah!... é que eu... como o outro que diz...
Sim... eu tambem reflecti que jantar sosinha n'um restaurante... Repara-se, não é verdade?
(pegando da mala e passando para a direita) Tem razão e eu cedo-lhe a sopa.[160]
Então o senhor... não come!
Boa viagem. (sahe pelo fundo).
(só, parece muito agitada, e observa se Liborio não volta) O tempo deve estar entroviscado... Cá o sinto nos nervos! (Senta-se á esquerda da jardineira, e serve-se da sopa atabalhoadamente; come em silencio) Esta sopa é detestavel! e depois não tenho appetite nenhum! (Arremessa a colher) Que é o que eu vou fazer a Lisboa? É uma tolice. Viajar, para quê? Lisboa já eu conheço... Se eu fôsse para o norte... (Erguendo-se raivosa contra si) Oh! Itelvina! tu és incrivel!... fazes coisas!... Eu fui muito injusta... porque elle amava-me... Meu pae foi o causador de tudo... Para que lhe disse elle... «Fez bem em matar Macario»? Oh! com certeza, teria elle feito uma boa acção, e a minha maior injustiça foi eu querer castigal-o por isso... Papel sellado!... que patife!...[161]
(fóra) Vae ahi á Batalha chamar o trem, depressa.
É a voz d'elle!... tornou!...
(entrando pelo fundo) Queira perdoar, minha senhora! Chove a cantaros; hade consentir que eu espere o trem que mandei buscar.
Póde esperar, e como está em jejum, e a sopa está excellente... se quer...
A sopa cheira bem... muito bem... Isso é verdade.
Se não receia que o envenene...[162]
Oh!... (reconsiderando) Em fim... (jovialmente) visto que a senhora tambem come...
Então sente-se.
Pois sim... Nada, não quero... Tenho visto muitas comedias em que esposos zangados commettiam a imprudencia de comer juntos, e á sobremeza tinham a desgraça de fazer as pazes... Eu não quero que a senhora se persuada...
Sem cerimonia... Não quer?
Não duvido... mas peço licença para comer a minha sopa, longe, acolá, sobre aquella meza (Leva para a meza da direita o seu talher e prato; á parte) Antes quero isto.
Á sua vontade... talvez estivesse mais seguro no páteo.[163]
Isso não, porque o vento me sacudiria a chuva sobre o prato. (come).
(comendo tambem) Que triste tempo para viajar!...
Não tanto assim... Em primeira classe vae-se agasalhado... Mas pergunto eu: a senhora por que vae?
Porque não quero estar no Porto.
Mas, visto que eu me retiro, a senhora fique.
Sosinha?
Não: com seu pae e com o defunto Macario.
Acha que é de bom gosto fazer-me troça?[164]
Pois não me disse ainda ha pouco que o amava?
O senhor não me acreditou. Conhece-me bastante para saber que eu não sou mulher que ame quem a ultraja... Quer beber? (deita-lhe vinho no copo) Beba, ande. Ora vá!...
(erguendo-se) Muito obrigado (Vae pegar do seu copo de sobre a jardineira e bebe).
(entrando pelo fundo com um prato) Fil-a esperar, minha senhora: mas a causa foi o senhor que me mandou buscar um trem (a Liborio:) Já lá está.
(pousando o copo) Ah! bem! (saudando) Minha senhora![165]
(a meia voz) Deante da creada, não. (alto) Sáe, Sebastiana.
(pondo o prato sobre a jardineira) Sim, minha senhora. (Sahe pelo fundo levantando a terrina e os pratos servidos).
Agora, se me dá licença... (faz mensão de sahir).
Peço-lhe que se demore um momento... O meu fim não é fazer a tal scena das pazes, descance. Mas, como não nos veremos mais é necessaria a ultima explicação.
De que serve isso?
De mais a mais, sobra-lhe tempo para jantar aqui ou na estação. (Servindo-o) Quer uma aza de perdigoto?[166]
O certo é que as emoçoens tem-me extenuado... Tomarei um pãosito; mas deixemo-nos de explicações, se faz favor... (Pega d'um prato e pão e vae sentar-se á sua meza, a comer).
(passados instantes) Confesso que fui violenta, arrebatada; mas o senhor julga-se innocente?
De modo nenhum. Eu pratiquei o enorme e condemnavel crime de me apresentar á senhora em fórma de carta a participar um enterro. Confesso, contrito, a culpa. Se me levassem a uma policia correccional e o juiz me perguntasse: «O snr. Liborio é réo?» Eu respondia: «Sou réo, snr. juiz!»
O senhor prestou-se a uma ridicula mistificação, uma fraude ultrajante, odiosa, só com o fim de dilacerar uma mulher.
Não foi isso.[167]
Então que foi?
O caso é este. Macario tinha-me dito o diabo a quatro da senhora. Ora eu tenho cá para mim que quanto mais mal se diz de uma mulher, mais se deseja ser amado d'ella. A alma do homem é assim formada de estupidez e capricho...
Huum! (Depois de um curto silencio) Quer beber? (Enche o copo).
(erguendo-se) Agradeço (vae á jardineira) Muito obrigado, querida senhora! (Bebe e torna a ir sentar-se, levando o copo).
(tendo bebido) Sempre o senhor me collocou n'uma situação bem exquisita! Eu julgava-o o assassino de Macario; e, n'esta persuasão, o meu dever qual era? que me cumpria fazer?
Mandar chamar o chefe da policia.[168]
Eu conheco lá policias...
Em vez d'isso, pensou lá comsigo: «Como é um scelerado, cazo com elle. Se o mettesse na Relação, elle poderia fugir vestido de mulher; mas, cazando com elle, é o mesmo que pôl-o na Penitenciaria, d'onde não se foge facilmente.
(erguendo-se e vindo ao meio) E isso é tão verdade que o senhor gosa a liberdade de retirar-se quando quizer.
Mas pergunto eu: tenho liberdade para offerecer a outra o nome que lhe dei? Posso mentir, enganar... e mais nada. Com toda a certeza, heide esquecêl-a; mas hade levar tempo... Não me fingo mais forte do que sou... Esta manhan ainda eu a amava... Como os homens são, senhora!... As mulheres, ás vezes, agradam pelos seus defeitos... e a senhora estava na conta. A senhora chorava de raiva; e eu ao deixal-a, chorava imbecilmente[169] de saudade... d'amor! (Ergue se) Estupida confissão, mas verdadeira!... (Passa á esquerda) Ah! Como os homens são bêstas! Graças vos sejam dadas, Senhor! Isto acabou-se! (Itelvina, sem lhe responder, corre á janella que abre).
(atirando dinheiro á rua) Cocheiro, ahi tem 10 tostoens; vá-se embora.
Como é isso? elle é o meu cocheiro.
Liborio! eu amo-te!
Como?
Tu não te vaes embora!
Não vou?...
Peço-te perdão, peço-t'o de joelhos! (ajoelha).[170]
(ajoelhando-se tambem) Tu... de joelhos!
Confesso que fui injusta.
Sim... a fallar verdade... mas não...
Perdôa-me!
Perdôo... E o pé torcido? Destorceu-se?
Estou boa de todo.
Minha esposa!
Meu marido! (abraçam-se sem se levantarem).[171]
(entra pelo fundo e recúa) Elles lá se estão a trincar um ao outro!
(erguendo-se) Está enganado... não nos trincamos.
(o mesmo) Meu pae, eu adoro o meu marido!
Ora ainda bem!
Aqui entre nós, eu creio que ella está de todo desméxicada.
Antes isso, meus filhos, antes isso... Eu vinha annunciar-lhes que me installei definitivamente no Candal.[172]
(a Liborio) Meu senhor, a sege foi-se embora. Quer que se chame outra?
Só se fôr para meu sogro que se muda, acho eu...
Effectivamente mudo para sermos todos felizes de uma assentada. Gosto do Candal. Tenho lá para me entreter o castello do rei mouro, os armazens de Villa Nova. Nos armazens... oh! isso lá é que ha fontes sem ser moiras; fontes christans... christans talvez de mais, por serem muito baptisadas... E depois a serra do Pilar, logares historicos, etc. Vocês cá ficam muito felizes...
Sim, meu pae, muito felizes... (abraça estremecidamente o marido).
(com ternura) Então, esta noite, não me penduras a bota nem escondes o chinelo?[173]
(com meiguice) Não.
Nem torces um pé?
Tambem não...
Bem! Regalem-se por cá. Lua de mel á portugueza... e nada de Mexico...
End of Project Gutenberg's O Assassino de Macario, by Camilo Castelo Branco *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O ASSASSINO DE MACARIO *** ***** This file should be named 26913-h.htm or 26913-h.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/2/6/9/1/26913/ Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. They may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at https://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is in the public domain in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country outside the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org 1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived from the public domain (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg-tm License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided that - You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." - You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm works. - You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. - You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg-tm works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread public domain works in creating the Project Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at https://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit https://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: https://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.